Eu & / Valor Econômico
Casa tem uma notável história de presenças
de pessoas que se expressam com lucidez e democrático compromisso com o mandato
no marco de referência da Constituição
Estes primeiros meses da nova legislatura
da Câmara dos Deputados fazem uma interessante revelação sobre o Brasil
político: a enorme e democrática importância dos parlamentares que expressam o
modo de pensar e de ser dos brasileiros que não sucumbiram à prepotência e às
violações do bolsonarismo e suas aspirações ditatoriais antidemocráticas e
antissociais.
Desde a CPI da Covid já havia indícios desse novo e pluralista sujeito da democracia. Da podridão do regime de 2019 nascia um novo Brasil político. Mesmo quem é eleito por gente autoritária e intolerante, apesar do seu atraso barulhento, o que tem legitimidade no poder é o que terá sentido na perspectiva constitucional e democrática. Frequentemente, na prática legislativa, os que falam fora dos marcos constitucionais nada falam. São parlamentares inúteis porque ignorantes do que é representação política, isto é, o Outro que define a sua identidade de representante de um sujeito político que não é ele próprio.
A Câmara tem uma notável história de
presenças sempre surpreendentes, de pessoas que se expressam com grande lucidez
e democrático compromisso com o mandato no marco de referência da Constituição
e das leis, um sujeito maior e melhor do que suas pessoas, a democracia.
Nas Comissões Parlamentares de Inquérito
temos visto mulheres e homens de grande discernimento e coragem a enfrentar a
prepotência e o autoritarismo de deputados que se julgam eleitos para negar o
significado constitucional profundo do voto e da representação política.
Representação quer dizer presença do ausente e não presença própria.
Eleito, o deputado nega-se na alteridade de
que é voz e presença para viabilizá-la. Na aceitação do mandato há uma renúncia
sacrificial à pessoalidade e à subjetividade que passam a existir entre
parênteses na vida privada do eleito.
Mesmo que um parlamentar tenha no punhado
dos seus constituintes um elenco suficientemente numeroso de pessoas
destituídas de discernimento propriamente político e que ele próprio seja um
ignorante completo, sua voz se esgota no limite da identidade do representado,
o ser coletivo de uma vontade republicana e democrática anterior a esse
mandato. O de um momento relativamente raro, o da Constituinte, que deu vida ao
nosso melhor projeto de nação. A mais lúcida expressão de nossas necessidades
sociais, pluralistas e democráticas: a Constituição de 1988.
É mais do que um documento de referência. É
um mandato e um pacto de destino. Nesse marco, o mandato é um filtro que
segrega tudo que o nega.
Quando a pessoa tira o título eleitoral,
adere ao pacto político implícito, torna-se membro da ordem política, regulada
pela Constituição. Sujeita-se, torna-se outra e diferente pessoa, torna-se o
Outro, altruísta, sujeito da cidadania.
Da Câmara atual, faz parte um membro da
família imperial brasileira. A Câmara é uma instituição do Poder Legislativo e,
constitucionalmente, local da voz política de um Brasil republicano. Ali, o
membro da família monárquica não representa uma opção pela monarquia, mas a
tolerância do nosso regime republicano pela diferença que ele é.
O regime político brasileiro tolera
democraticamente essa diferença e lhe dá o direito de falar no marco de referência
da República. Um monarquista pode ser voz de expressão de vontades sociais
construtivas no aperfeiçoamento da sociedade democrática e republicana.
Pode-se aplicar o mesmo princípio à questão
da religião. O eleito pode ser evangélico ou católico ou professo de qualquer
outra convicção religiosa ou de nenhuma. Somos um país que tem pelo menos 1
milhão de pessoas que têm fé, mas não têm religião e tem numerosos professos de
religiões que são ecumênicos, isto é, pluralistas.
O evangélico ou o confessante de qualquer
outra religião não pode transformar nenhum dos poderes da República em templo
de sua crença ou de sua falta de crença. Isso negaria a própria liberdade
democrática que lhe permite ser religiosamente único e politicamente plural.
Foi o Brasil oficialmente católico que, já
no Império, reconheceu o direito à diversidade religiosa que abriu espaço para
que protestantes tivessem voz e opinião religiosa no país. Sem isso, o nosso
teria permanecido um país antidemocraticamente fechado à importância
socialmente criativa da diversidade das crenças, isto é, da pluralidade das
formas de conhecimento do sagrado. Essa postura do Brasil católico ampliou nosso
caminho rumo à civilização.
Não tenho o menor direito de impor ao outro
minhas convicções religiosas se elas limitam e tolhem as suas. Até porque,
desse modo, minha intolerância comprometerá minha própria liberdade de crença.
A política é dialética.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “As duas mortes de Francisca Júlia - A Semana de Arte Moderna antes da semana” (Editora Unesp, 2022).
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