Folha de S. Paulo
A militância, tão feroz e vocal, precisa
aprender a baixar as armas e lembrar que o setor progressista venceu por pouco
Prosseguindo com minhas
sugestões para a esquerda no Ano-Novo, destaco a necessidade de
reconsiderar uma atitude específica da militância: é preciso baixar as armas.
Compreendo que de 2015 a 2021 a esquerda brasileira comeu o pão que o diabo amassou. A sua presidente recém-eleita levou um impeachment que de isento e republicano não teve nem o odor, o antipetismo virou o mais importante eleitor do país, a extrema direita saltou do seu pico de 3% de votos para mais da metade dos eleitores, a Lava Jato se engajou na destruição do PT como uma missão religiosa, o maior líder político e eleitoral da esquerda foi trancado em um cárcere em Curitiba.
Por tudo isso, pareceu-me razoável que
celebrasse a volta por cima, que começa com a saída de Lula da prisão e a
restituição dos seus direitos políticos até a épica vitória em 2022.
Talvez por isso, quando digo que o governo
precisa falar menos para o PT e os identitários,
e mais para a maioria dos brasileiros, que precisa construir pontes e buscar
entendimentos em vez de oferecer corredores poloneses ou exigir caminhadas
penitenciais, elogiam-me de estúpido, arrogante e direitista.
Ensinam-me que Lula já ganhou tudo quanto é
campeonato eleitoral e sabe decerto o caminho da vitória. Esfregam na minha
cara que o importante na política é ter superioridade moral sobre os inimigos,
e isso a esquerda, uma ilha de virtudes cercada de fascistas por todos os
lados, teria de sobra.
E riem da minha negação do óbvio: a esquerda
ganhou a última eleição, salvou a democracia e tem direito, sim, de se
comportar como vencedora, fazer dancinha e botar o dedo na cara dos vencidos.
No ano de 2023, de fato, tornou-se evidente
que a esfera pública não se transformara em uma arena de gladiadores apenas
devido à estratégia política de Bolsonaro e seus seguidores, que baseavam suas
ações em provocação e insulto.
Quando a esquerda parou de lutar com o
bolsonarismo, iniciou a briga consigo mesma, com os que votaram com relutância
em Lula em 2022 para salvar a democracia e contra a esquerda que não professava
todos os dogmas vigentes, embora todos tivessem sido considerados bons
companheiros no tempo das vacas magras.
Depois, a guerra contra tudo e contra todos
da esquerda identitária gerou um confronto direto com a esquerda de classes,
sobretudo quando os primeiros resolveram pressionar Lula para usar a política
identitária como filtro para indicações e preenchimento de cargos.
Por fim, começaram as hostilidades contra as
empresas de plataformas, tratadas como a raiz de todos os males, algo que, de
algum modo, prosseguiu até o fim do ano na forma de uma guerra declarada contra
"a mídia corporativa", com assédio e cancelamento de jornalistas,
editores e colunistas.
A militância de esquerda parece ter assumido
como tarefa tornar infernal a vida de quem ou não faz os devidos sacrifícios
nos altares identitários ou se atreve a não amar Lula, o governo a esquerdas ou
suas causas de estimação acima de todas as coisas.
Baixar as armas? Jamais. O guerreiro não
conhece descanso até que o inimigo se renda, ou seja eliminado, mesmo que a
guerra se dê só nas telas e ambientes digitais e o combatente não tenha que
sair da poltrona.
De todo lado, ouve-se que "a falta de
confronto permitiu a instalação do fascismo entre nós" ou que "apenas
estão reagindo à opressão estrutural". Quem diz coisas desse tipo é, na
verdade, um mal disfarçado violento, contido apenas, e contra a sua vontade,
pela própria impotência. O militante experimentou nesses anos o gosto de
sangue, apreciou e está viciado.
Contudo, uma análise rápida das dimensões das
bancadas da esquerda em comparação com seus oponentes nas casas legislativas
revela que a abordagem atual está equivocada.
Os identitários de esquerda, tão vocais e
ferozes, por exemplo, são uma fração minúscula e impotente de eleitos ante a
enorme armada das bancadas dos identitários de direita, como a da Bíblia. Se
partir para a briga, perde e Lula não governa. Na democracia, governa quem tem
votos parlamentares, não quem tem razão.
Amigos petistas, queridos
membros da esquerda-Leblon, não se enganem, nem o bolsonarismo
acabou nem a esquerda ganhou a eleição de 2022. A esquerda venceu, por pouco, a
eleição presidencial, os seus adversários ganharam, de lavada, a eleição do
Congresso.
Ponham na cabeça que a capacidade de a
esquerda governar estará sempre por um fio. Desçam do salto. Realismo político
e canja de galinha não fazem mal a ninguém.
*Professor titular da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada"
Um comentário:
Perfeito.
Postar um comentário