O Estado de S. Paulo
Somos a civilização da falsificação da imagem que interpretava os fatos. Um milhão de fotos vale mais que uma palavra de honra. E como vende. E como funciona
A credibilidade da fotografia entrou numa
espécie de fadiga do material. Não há mais como não duvidar da autoridade
daquela imagem realista que se abria diante dos nossos olhos como se fosse a
prova definitiva de um acontecimento. Uma foto, muitas vezes, é um embuste.
Tempos atrás, quando as câmeras ainda se valiam de filmes para registrar um instante, o negativo era reverenciado como se fosse a verdade em pessoa. Acreditava-se que naquele pequeno rolo de triacetato de celulose estavam impressos fragmentos genuínos da História, um documento tão confiável quanto um caco de cerâmica de civilizações extintas, um manuscrito autêntico de um escritor célebre, um dente de dinossauro. Hoje, a conversa mudou. Estão aí as evidências escarradas de que as fotografias mentem.
Hoje, os processos químicos que “revelavam” o
filme num ritual de alquimia sob luz vermelha deram lugar aos arquivos de
computador que, em um segundo, oferecem visões de pura epifania escópica: um
rosto de mulher com olhos de ressaca, os destroços de um hospital bombardeado
em Gaza, uma galáxia distante que lembra um carro alegórico na Marquês de
Sapucaí. São alumbramentos arrebatadores, mas muitas vezes são balela. O papa
Francisco, um tanto garboso, desfila com um impermeável branco típico de um
bilionário passeando nos Alpes: falso. Donald Trump algemado, de cara enfezada:
fake.
Os vídeos também aprenderam a mentir.
Desabridamente. Na semana passada, a OpenAI, empresa dedicada a sintetizar,
promover e difundir ferramentas de Inteligência Artificial, anunciou seu novo
brinquedo, chamado Sora. A partir de comandos de texto (os tais prompts), a
máquina cria filmetes exatos, fortes, convincentes, em altíssima resolução – e
fajutos. As produções visuais do Sora não refletem realidade nenhuma. Aliás,
nem sequer prometem refletir – são apenas peças de ficção que podem ser
confeccionadas sem o auxílio de seres humanos.
Alguém vai dizer, então, que vivemos um
paradoxo: nunca antes na história deste país, e de todos os outros, tantas
imagens circularam por tantos meios simultâneos para aplacar tanta avidez de
tantas plateias de uma vez só; ao mesmo tempo, nunca esteve tão em xeque a
confiabilidade da invenção popularizada por Louis Daguerre e seu daguerreótipo
de placas de prata. Os nudes e reels enchem o ar de euforia consumista, mas a
explosão das falsificações fotográficas deveria nos fazer pensar. O nosso
problema é que pouca gente corre o risco de pensar.
Régis Debray escreveu certa vez que somos a
primeira civilização autorizada a acreditar em seus olhos. Ocorre que a
esperança dessa civilização depende de sua capacidade de duvidar das telas
eletrônicas. Sim, é paradoxal. O conforto de crer cegamente nos próprios olhos
equivale a uma sentença de morte da civilização. A tragédia política do nosso
tempo tem que ver com isso: massas viciadas no gozo do olhar não pensam, não
gostam de pensar, apenas adoram seus bezerros de ouro digitais e idolatram seus
tiranos, ridículos tiranos.
O mais interessante de tudo é que, já no
tempo em que tomávamos os retratos como a expressão legítima da verdade
objetiva (a lente, afinal, sempre foi chamada de “objetiva”), as coisas não
eram bem assim. Uma foto não era somente o decalque do real. Acima disso, era
uma opinião sobre o real, na melhor das hipóteses.
A câmera – que hoje está embutida nos chips
minúsculos de qualquer celular barato – descende de um dispositivo ótico que
ajudava os pintores do século 17 a serem mais verossímeis em seus traços. Era a
“câmara escura”, uma ferramenta a serviço de um ponto de vista. A “câmara
escura” tinha a forma de caixote avantajado, no qual a luz só entrava por um
pequeno orifício. O exíguo filete de luz projetava, na parede oposta, a cena
que se passava do lado de fora. Sozinho dentro do caixote, o artista riscava sobre
o que via projetado e, desse modo, reproduzia com precisão as linhas da
natureza.
Com o tempo, esse caixote passou por
adaptações diversas, diminuiu de tamanho e incorporou lentes. Quando finalmente
a fotografia foi inventada, o pintor foi substituído por um mecanismo
artificial feito de materiais fotossensíveis. Depois disso, a revolução digital
substituiu o filme químico por chips. Então, no século 21, a Inteligência
Artificial substituiu o fotógrafo pelos prompts e aposentou a cena externa,
dispensou os fatos.
Mesmo assim, o poder sedutor da fotografia
segue intacto. Quem liga para os fatos? Somos a civilização da falsificação da
imagem que interpretava os fatos. Um milhão de fotos vale mais que uma palavra
de honra. E como vende. E como funciona.
Platão dizia que o pensamento só é pensamento
quando consegue ir além dos sentidos, como a visão ou a audição. Segundo ele,
ninguém alcançaria a verdade pelos olhos, mas pela razão. Nisso consistia a
passagem necessária da doxa (a mera impressão pessoal) para a episteme (o
conhecimento). O velho filósofo não estava certo em tudo o que escreveu, mas,
nesse ponto, merece sem lembrado – ainda que em vão.
*Jornalista, é professor da Eca-USP
Um comentário:
Muito bom!
Postar um comentário