Valor Econômico
Antes da viagem à África, o governo vivia seu
melhor momento e vai dar trabalho recuperá-lo
O afastamento de coronéis pioneiros na
implementação do sistema de câmeras nos uniformes policiais de São Paulo, de
uma corregedoria ativa e de pontes com o movimento social, é o último lance do
bolsonarismo redivivo. Não é por coincidência que acontece agora.
Antes desta última viagem internacional do
presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o governo vivia seu melhor momento.
Indicadores econômicos positivos, barganhas congressuais sob a mira da Receita
Federal e popularidade, finalmente, se mexendo para cima.
Com o Supremo e a Polícia Federal cuidando
para que seu antecessor, sob flagrante golpismo, nunca mais voltasse a ver seu
nome numa urna eletrônica, caberia a Lula derrotar politicamente o
bolsonarismo. E foi a esta tarefa que se dedicou, com habilidade inaudita, ao
encontrar os governadores dos três maiores colégios eleitorais, todos aliados
do ex-presidente Jair Bolsonaro. Ao “normalizar” a política, Lula a trazia para
o jogo que conhece, sabe e ganha.
Com a frase em que juntou Hitler e Gaza, Lula andou muitas casas para trás nesse tabuleiro. Transformou a política externa, novamente, em campo minado, quando poderia, facilmente, fazer a diferença neste terreno com moderação e equilíbrio.
Cometido o desatino, era chegada a hora de
repará-lo. O grau de excitação com que embarcou no voo de volta para o Brasil,
desassossegado em busca dos gols do Corinthians, sugere que só se deu conta do
estrago ao desembarcar.
A reação descompensada da chancelaria
israelense à declaração impediu que o Itamaraty servisse de freio aos ímpetos
palacianos. Foi aí que o governo decidiu dobrar a meta. Ao evitar a retratação
- junto ao povo judeu e não a Benjamin Netanyahu - permitiu-se que a crise
ganhasse corpo para além da comunidade judaica.
Ao se deixar provocar pela diplomacia dos
tuítes, o governo correu o risco de abandonar o campo da mediação, campo no
qual lastreia, historicamente, sua atuação. Foi movido pela crença precipitada
de que teria exércitos para enfrentar a expertise israelense na propagação de
realidades paralelas.
O governo israelense chamou de “negacionista”
o primeiro presidente brasileiro a visitar Israel e cujo chanceler (Celso
Amorim), nos seus dois primeiros governos, esteve cinco vezes no país nesse
período. Decidiu escalar a crise porque só tem o que ganhar com ela.
O governo brasileiro resolveu responder ao
tuítes desaforados da chancelaria israelense depois de receber pesquisas
internas mostrando que a campanha “Lula tem razão” estava ombreando com aquela
do “negacionismo” de Lula. A postagem do chanceler israelense chamou a
declaração de Lula de “vergonhosa, promíscua e delirante”. Ao respondê-lo em
nota, o chanceler Mauro Vieira, que sempre se notabilizou pela moderação, usou
cinco adjetivos para definir a linguagem de Israel Katz: “Chula, irresponsável,
desonesta, insólita e revoltante”.
O senador Jaques Wagner (PT-BA) foi o melhor
peão da crise. Ao dizer que sua discordância se limitava à comparação, o líder
do governo deu um recado simples, o de que não é preciso ir para a oposição
para discordar do presidente. Tem um duplo lugar de fala - a origem judaica, e
a liderança do dissenso governista, no ano passado, na adesão à PEC que limita
as decisões monocráticas.
A aprovação desta proposta no Senado não
apenas viria a facilitar o trâmite da indicação do ministro Flávio Dino ao
Supremo Tribunal Federal, quanto manteria abertos os canais com a oposição
bolsonarista no Senado.
Naquela ocasião, Wagner jogou em dobradinha
com o presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). Desta vez, mostrou com que
tom se faz uma liderança. Os decibéis acima de Pacheco mostraram que se seu
candidato à sucessão da mesa, Davi Alcolumbre (União-AP), fosse assim, tão
favorito, não precisaria, para arrebanhar a bancada bolsonarista, ter esticado
tanto a corda da retratação.
No campo externo, a crise começou a ser
contornada a partir da audiência ao secretário de Estado americano, Antony
Blinken, e com o moderado discurso do chanceler brasileiro no G20. Na política
interna, o reparo ainda vai demorar.
A crise devolveu a capacidade de mobilização
do bolsonarismo. Governadores e parlamentares que, acuados pela operação da
Polícia Federal da trama golpista, fingiam não ter visto a convocação do
ex-presidente para uma manifestação em seu apoio mudaram de ideia. Seus
organizadores informam a presença de três governadores e mais de 100
parlamentares.
O episódio ainda mostrou o preço que o
governo paga pelo distanciamento que mantém de igrejas evangélicas. Embaladas
pela fábrica de notícias falsas sobre a “oposição” de Lula ao Estado de Israel,
lideranças evangélicas que demonstravam abertura para conversar com o governo
voltaram ao cercadinho de Bolsonaro.
E, finalmente, a prevalência da linha-dura da
polícia paulista não é um problema apenas para Tarcísio de Freitas. O
governador terá que arbitrar a guerra deflagrada entre setores de sua polícia
pelas operações no litoral e agora agravada pela força redobrada da ala apoiada
pelo ex-presidente. Na medida em que mostra a sobrevida do bolsonarismo mais
truculento, traduz um obstáculo também à “normalização” da política na qual
milita o presidente da República. Nada disso acontece por mérito de Bolsonaro.
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