terça-feira, 16 de abril de 2024

Aylê-Salassié Filgueiras Quintão* - Que tamanho terá esse monstro amanhã?

"Davam duas horas para suspender uma conta, ou teríamos multas pesadas". Antes do surgimento das tecnologias digitais, podia-se falar livremente, em qualquer lugar, sobre pessoas e coisas. As  palavras despareciam no ar.  Hoje, entretanto, não é bem assim. Os olhos e ouvidos das redes sociais registram tudo. As intenções são detectadas, decodificados ou reproduzidos  rapidamente por cidadãos conectados pela  tecnologia digital. Eles  superam, no mundo, a casa dos  5 bilhões de pessoas . No Brasil são mais de 100 milhões.  Nesse universo, os discursos  não só ganham sentidos , ´como instigam  ações. O filósofo francês Michel  Foucault, não propriamente um usuário da internet, advertia:  palavras são símbolos vivos, geram ação e criam realidades. 
 
A consideração é elucidativa para  essa contenda entre Elon Musk, proprietário do Twitter (X),    e Alexandre de  Moraes, um ministro do Supremo Tribunal, do Brasil. O embate entre os dois  reverbera ideias expandidas digitalmente na  consciência dos cidadãos . Vêm da livre circulação das palavras e  das armadilhas discursivas que nelas se  escondem. Pela dimensão que alcançam, o que está no submundo da etimologia não fica ignorado das redes digitais , sobretudo os enunciados absurdos .

 A burrice não é tão generalizada como se quer acreditar. A reação ampla e imediata nas redes  chega a assustar os emissores empoderados da esfera do Estado. Fragilizados diante do cidadão digital, não conseguem se esquivar da tentação  de cercear a  liberdade de informar e de pensar .  O alargamento das reverberações contestatórias nas redes sociais , chegam a desqualificar sujeitos, autoridades e  ideias  tidas como impróprias ou "fakes" . 

No campo da política , há no mundo  uma disputa   hegemônica para apropriação das  novas tecnologias que alargaram competências e a compreensão  do cidadão comum. Vista como virtude, ao mesmo tempo, constituiria  uma ameaça. Os militares brasileiros chegaram a   recusar a entrada da internet no Brasil,  hoje controlada  na China -  nosso pretenso modelo político -, na Rússia, em Cuba e  países com perfil similar . Criaram   uma secretaria de tecnologia vinculada  à Presidência da República para gerar e administrar uma política tecnológica exclusivamente nacional, até então algo rudimentar. 

Digitalmente, o Brasil parara no tempo. Não havia por aqui massa crítica capaz de erigir  aqueles propósitos de cunho nacionalista. Nesse ínterim, as novas tecnologias  expandiram-se, e o uso da internet evoluíu num ambíguo confronto  entre o controle e a proibição, dentro do escopo da liberdade de pensamento e de informação . As pesquisas e tecnologias   fortaleceram  a tal ponto a    sociedade civil, que ela terminou  derrubar governos, como aconteceu nos países árabes do  norte da África.

Nosso atual destemido  Presidente da República e sua "entourage" parece deglutir a questão, como um Macunaíma, ao pretender retomar essa linha autoritária. "O País não precisa da inteligência artificial", porque é suficientemente inteligente para dar resposta ao que necessita. Anunciou que  irá assinar nos próximos dias um ato de  regulação da IA no Brasil, e que o governo já cogita de algo digital próprio.

Tudo bem, mas certamente um conteúdo com essa origem pode  significar o controle da  informação. Para começar, o Presidente vê no Brasil apenas  dois polos políticos  : "Esquerda e Direita", que chamou de  "Nós e Eles". Os substratos aderem naturalmente  . Difícil  acreditar que isso seja   fruto de confusões  mentais discursivas ou de insuficiência intelectual .  O  "Nós e Eles"  não é uma  declaração apenas  intempestiva,   surgida no calor da hora. Nela brota  o futuro de um governo centralizado perene, um partido único  proletarizado,  conforme explicou José Dirceu. 

O problema é  como essa futurologia  vai se materializar? A democracia  nunca conseguirá construir um regime desses no Brasil. O  "Nós e Eles" é  uma espécie de mantra que alimenta, infelizmente, um  ódio,  uma linha demarcatória das   diferenças  entre as pessoas na sociedade voltadas para o bem ou para o mal . Uma mensagem dessas ignora a história, e não se preocupa com as consequências .   

É complicado  explicar o ódio  gerado  por uma aparente e ingênua declaração, que induz a um distanciamento  entre as pessoas de uma  comunidade , produzindo facções de amigos e inimigos. O ódio, como método,  é  o sentido oculto no enunciado, contido até em desleixadas declarações sobre a busca pela paz e a democracia.  A introdução  dessa diferença social exige  um emissor com  coragem  e desfaçatez para  mentir e agir. Instalado carismaticamente tende a se perpetuar, como o peronismo, na Argentina; o maoísmo, na China; ou o stalinismo, na Rússia.  São realidades , segundo  Foucault, criadas pela palavra . Caminha-se, portanto, em direção a uma nova ética na  gestão  pública. 

 Nem Nitsche suportaria tanta ousadia .Todos os que mentem estão conscientes de que o fazem. São perfis recorrentes. Insistem em fazê-lo também por dois motivos : um patológico e o outro, porque , nas suas fantasias existenciais, vem nesse caminho uma forma de se estabelecer no cenário.  A mentira e o ódio juntos trazem também em sua própria configuração matrizes do contraditório, identificadas e exploradas pelas redes sociais . Na verdade, é tudo grosseiramente  óbvio nesse politicamente correto.

Se o ódio e a mentira, simbolizados nas palavras, desmascaradas nas redes digitais ,  não são  suficientes para  sepultar narrativas, resta a censura que surge na cabeça de ineptos   governantes . E é  assim que  a Nação assiste estupefata , essa discussão entre um ministro do STF e o dono de uma  plataforma digital,  sentenciada a apagar opiniões de políticos e jornalistas . Musk  expande seus negócios explorando a liberdade de informação. O  cidadão ministro à busca de legitimidade  para suas belicosas atitudes anticonstitucionais. São verdadeiras  monstruosidades  em curso  . A persistirem, resta a pergunta: de que tamanho será esse monstro amanhã?

*Jornalista e professor

Um comentário: