terça-feira, 16 de abril de 2024

Carlos Andreazza - Um morto muito louco

O Globo

Está lá um corpo estendido no chão. Há meses. Ainda não visto. Está lá, podre já. Gere-se o cadáver; a ocultação do bicho. Processo mui favorecido pela fluência da valsa entre enganados e enganadores. (Fingir não ver faz esperança e preço; faz também um ministro.) Ainda não avistado o presunto, coberto pela maré alta; que fantasia e charme não deixam baixar. (Maré artificial cuja sustentação custa caro. Você pagará a fatura. Nenhuma novidade. E vale: o país está salvo, derrotado o capeta. Pague-se.)

Trabalhando com a maré, a favor do “me engana que eu gosto”, a espuma; que dissimula a perversidade, de natureza necrófila, contida em tanto bulir na carcaça. O troço esvaído — e mexido, mexido, mexido. Jesus!

A espuma: Musk já cansado ou por se cansar do Brasil, doravante dedicando-se à liberdade na China e na Rússia. Ficaremos mesmo — em defesa da democracia — com revigorados Xandão e inquéritos xandônicos. Destino cuja previsibilidade só não era maior que a do fado da regra fiscal haddadiana. (Ou que a de novo calote de governos estaduais e seus claudiocastros. Renegocie-se, em honra à incompetência e ao estelionato eleitoral.)

Endividamo-nos, para déficit também do Estado de Direito. Sina. O ajuste, o equilíbrio, a vir nalgum porvir. A conta que não fecha hoje. Jamais hoje. A da democracia garantida por autoritarismos. A da economia, por petismos.

O mundo real se impõe. Sempre. E ficaremos mesmo — em defesa da responsabilidade — com o fiscalista Fernando Haddad, cuja “Fazenda não se opôs” ao contrabando que garantirá gasto extra de quase R$ 16 bilhões. Culpa do vilão Rui Costa. Né? O mordomo de um governo incondicionalmente comprometido com a liberdade de gastar.

(Haddad não quer gastar. Ok? Apenas precisa arrecadar para o governo gastar.)

Está lá um corpo estendido no chão. Há meses. Coberto o presunto pela maré alta que fantasia e charme não deixam baixar.

O corpo morto, inchado dos sais, é do arcabouço fiscal. Natimorto, desde então submerso. Morto muito louco. Fantasia: a meta zero. Charme: o violão de Haddad. Protegido o defunto — a água da fé e outros interesses tapando também o cheiro — pelo desejo (jogo) em acreditar (fazer acreditar) no fechamento de conta que não fecha. E então se mexe no morto.

A regra natimorta: gastar sempre e mais; nunca cortar despesas; arrecadar e arrecadar e arrecadar. Para simular rebater a despesa que cresce. A conta que não fecha. Que nunca poderia fechar. Meta fiscal em xeque, pois. A fachada, peça de propaganda, que facilitou o delírio. Haddad vencedor. O compromisso mantido! Meta já era. E não a dos anos vindouros, que essas já foram para o saco. Em xeque a meta de 2024. O compromisso... meios de arrecadação “se exaurindo” — né, ministra Tebet? Algo que se tratou como “soluço do arcabouço”. Nunca vi defunto soluçar. Você soluçará. Compromissos como bolinhas de sabão.

Arrecadação cansada. Exaustão ineficiente para provocar alguma prudência; e aí está: revira-se o cadáver — que soluça — para disparar, com base nas receitas de meses vencidos, gatilho antecipador-liberador de granas que as projeções do futuro travariam.

Se “a previsão de receitas não aponta recursos suficientes”, soltem-se hoje, para efeito amanhã, recursos com base no resultado do passado. Ainda assim, não será suficiente. Não seria suficiente nem se houvesse uma PEC da Transição por ano.

Manchete deste GLOBO: “Pressionado, governo dá aval a mudança no arcabouço fiscal para garantir recursos”.

Pressionado? Por quem? Elão? Xandão? Bolsonaro? Fascistas? Golpistas? Pressionado o governo por ele próprio. Pela farsa que criou. Pela carga do finado que encobre e carrega. E então se bole com o morto. Maquia-se o morto.

Na falta de uma PEC da Transição permanente — a turma queria — para despejar bilhões de orçamento em orçamento e vestir perdulários de operadores no azul, a Fazenda não se opõe à maldade de Costa.

Fala José Guimarães, líder de Lula na Câmara:

– Foi uma opinião do governo comandada pelo Rui Costa.

O governo é Lula. Costa é Lula. Haddad é Lula. A opinião do governo Lula é de Lula: dane-se; gaste-se.

A isso não faltará o Parlamento de Lira e Alcolumbre. Grana extra negociada, incorporada aos orçamentos do futuro, em troca de acomodação para aqueles cerca de R$ 5,5 bilhões vetados às emendas de comissão, esse conjunto constitutivo de fundo eleitoral paralelo em ano eleitoral. Padilhas e outras espumas à parte, a galera afinal se acerta.

Capaz ainda de o governo, com essa pedalada, comemorar a chance de desbloquear porções do Orçamento. Rapaziada competente.

Morto eficiente, o arcabouço fiscal. Um morto, nascido morto, cuja morte ainda será declarada. Não se sabe quando. Talvez nunca. Um morto que morre diariamente. Um morto muito vivo. Convenientemente.

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Pensei que o ''morto muito louco'' fosse aquele da cadeira de rodas,apesar que naquele caso,a sobrinha é que está louca.