O Estado de S. Paulo
É difícil aceitar a ideia de uma liberdade de
expressão absoluta, sobretudo no tempo das redes sociais. Um debate
transparente e um acordo nacional sobre o tema são mais que necessários
Amais recente manifestação promovida por
Bolsonaro, no Rio de Janeiro, reuniu menos gente e marcou também uma inflexão
tática. Em São Paulo, em fevereiro, a ênfase era evitar a prisão de Bolsonaro e
lembrar os presos do 8 de Janeiro, por meio do pedido de anistia. No Rio, o
tema central era liberdade de expressão e apoio internacional.
A experiência acabou mostrando que esse
caminho era mais promissor por duas razões. As denúncias de censura são
potencialmente capazes de impressionar estrangeiros, especialmente
norte-americanos. Culturalmente abertos para a liberdade de expressão, alguns
são ingênuos o bastante para achar que suas leis devem valer para todo mundo.
Um outro fator importante é a abertura das grandes plataformas para a ideia de liberdade de expressão absoluta, fator essencial para a garantia dos lucros. No momento, Elon Musk e seu X estão em choque com o governo da Austrália, em torno da divulgação das imagens de um ataque a faca numa igreja. O governo acha que a divulgação estimula o crime.
Em termos teóricos, não seria necessário
discutir com Bolsonaro sobre liberdade de expressão, pois é defensor da
ditadura militar, aceita a tortura como forma de luta e embarca nessa luta por
oportunismo.
O problema central são as pessoas que
genuinamente defendem a liberdade de expressão como um valor absoluto e não
aceitam nenhum tipo de limitação.
Recentemente, no Brasil, o jornalista que
divulgou os Twitter Files, Michael Shellenberger, dizia orgulhosamente que a
Corte americana permitiu uma manifestação nazista num bairro judeu, em 1977.
Nem todo país do mundo faria isso e por
razões bem claras. Um grande teórico da liberdade, Isaiah Berlin, diria apenas
que a liberdade do lobo é a destruição do cordeiro.
Berlin fez sua célebre conferência sobre o
tema em 1958. Mas, ainda assim, seus argumentos são válidos. O que decorre de
suas teses é que uma sociedade pluralista pode não proteger o conjunto completo
de liberdades liberais, mas pode ser mais humanamente desejável do que uma
sociedade liberal na qual alguns requisitos de decência mínima são violados.
Depois da 2.ª Guerra, ficou bastante evidente
e acabou se consolidando em tratados que algumas práticas são tão hostis à vida
humana que sua erradicação deve ter prioridade. Escravidão, tortura e
perseguição racial são alguns exemplos.
Numa sociedade pluralista vista por ele, a
liberdade pode entrar em choque com a igualdade, segurança e outros valores de
coesão comunitária e social. Neste caso, não se pode garantir à liberdade
qualquer tipo de prioridade absoluta.
O trabalho inicial de Berlin foi definir as
causas do totalitarismo como uma espécie de lição do século 20. Embora adote
muitos valores iluministas, ele considera que o Iluminismo é responsável, de
alguma forma, por um modo de pensar religioso que entra em choque com a
realidade. O problema central, na sua opinião, é muitos acharem que os valores
participam de um todo harmônico e não podem estar em contradição entre si, e,
se estiverem, é porque há algo errado entre eles. É uma suposição de harmonia
sem a qual seria difícil imaginar Deus, a Verdade Última. Um choque com a
realidade contraditória de alguns valores.
Creio que essa visão harmônica e religiosa
está na base da defesa de uma liberdade de expressão absoluta, sem a qual a
realidade torna-se difícil de suportar.
Recentemente, esse debate eclodiu na Escócia
em torno do Hate Crime Act (ato contra o discurso do ódio). A autora de Harry
Potter, J. K. Rowling, insurgiu-se contra a lei e desafiou ser presa na terra
onde o Iluminismo floresceu. Ela parece não aceitar que algumas palavras podem
ajudar a matar, sobretudo jovens transgêneros. Eles são o alvo de oposição de
Rowling.
Aqui, no Brasil, há dificuldade de avaliar
todo o processo que levou à retirada de posts e contas na internet. Só poderei
fazêlo quando puder estudar os casos detalhadamente, inclusive com a
fundamentação.
No entanto, tive a oportunidade de ver
pessoas incitando os generais a aderirem a uma virada de mesa, chamando-os de
covardes e melancias por obedecerem aos resultados legais das eleições. A
conclamação aberta a um golpe militar pode até ser permitida nos EUA, mas
deveria sê-lo no Brasil, vitimado por golpes inúmeras vezes em sua história? Os
neonazistas podem ser tolerados nos EUA, mas deveriam sê-lo na Alemanha,
lançada numa tragédia sem fim por essa corrente política? Mesmo nos EUA,
qualquer alusão a um ato terrorista, qualquer indício de preparação de algo
nesse sentido, é imediatamente reprimido.
É difícil aceitar a ideia de uma liberdade de
expressão absoluta, sobretudo no tempo das redes sociais. Por outro lado, a
ausência de uma discussão mais clara permite à censura uma latitude que ela não
pode ter.
Um debate transparente e um acordo nacional
sobre o tema são mais que necessários. Uma vez que as regras fiquem
absolutamente claras, tornam-se mais difíceis o abuso e o exagero.
As forças políticas, no que têm de mais
equilibrado, deveriam refletir sobre isso. As plataformas estão focadas no
lucro. A ausência de regras claras acabará sendo pior para todos: será possível
um ataque selvagem seguido de uma repressão também selvagem.
No momento todos perdem, embora a direita
trabalhe com a ilusão de que se possa vitimizar para dar a volta por cima nas
inúmeras acusações que sofre.
2 comentários:
Uma ótima reflexão sobre o tema.
Exatamente!
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