O Estado de S. Paulo
Se esta breve descrição do laboratório
ultraconservador fizer sentido, então teremos um roteiro para a reação dos
democratas em todo o mundo
Passado ao menos por ora o susto francês, com a aliança entre centro e esquerda que barrou a marcha aparentemente inelutável de Marine Le Pen, nossa atenção cruza o Atlântico e se volta agora para uma situação de risco ainda maior. Referimo-nos obviamente aos Estados Unidos, hoje uma sociedade fraturada e uma democracia disfuncional, em que um dos dois partidos históricos, capturado por um homem forte, tornou-se fator da subversão estimulada por uma parte das elites do país. De fato, a sedição de janeiro de 2021 marca um ponto de não retorno, com a negação da legitimidade dos resultados eleitorais e da transmissão pacífica do poder – um cenário que poderá se desenhar novamente em caso de vitória dos democratas, a priori inaceitável para os trumpistas.
A extrema direita europeia, justiça seja
feita, não cruzou a linha decisiva, mesmo que o fantasma iliberal também ronde
ameaçadoramente por lá. Aliás, ele nunca se corporifica da mesma forma nas
diferentes realidades nacionais. O peso material e simbólico dos Estados
Unidos, sua participação relevante na economia global e seu papel de primeira
república democrática dos modernos dão a dimensão da catástrofe que teria uma
eventual vitória da versão local do nacionalismo populista ou que outro nome se
queira dar. Desde logo, estaria aberta a possibilidade de construção da
terceira grande autocracia no nosso tempo. No mínimo, os democratas em geral,
não só os membros de determinado partido, seriam forçados a uma difícil e
arriscada manobra defensiva em face da ocupação organizada do poder planejada
pelo trumpismo.
Nos laboratórios da direita radical
norte-americana, fazem-se experimentos que convém observar atentamente, com
independência de flutuações eleitorais. Tiremos do termo “hegemonia” as
incrustações autoritárias para usá-lo no sentido de direção política, exercida
basicamente não pela força, mas pela capacidade de delinear um horizonte em que
os interesses gerais sejam acolhidos. Instituições e partidos, países e
organizações internacionais, sem fôlego hegemônico, recolhem-se à dimensão
bruta dos interesses mais crus e imediatos. Autocracias dispensam a elaboração
da hegemonia, impõem-se pelo medo e pela força. Uma involução norte-americana
com esse teor “corporativo” deixaria o mundo mais pobre e perigoso. Não haveria
sequer a retórica dos direitos humanos ou, numa hipótese menos drástica, ela
seria tratada com um cinismo ainda maior do que hoje.
Considerando a dinâmica interna da União
Europeia (UE), até há alguns anos o bem-vindo projeto unificador vinha sendo
ameaçado de desintegração pela “Europa das nações” defendida pelos diferentes
ramos da extrema direita soberanista. A partir de dado momento esta última se
sentiu, certa ou erradamente, em condições de remodelá-lo à sua imagem e
semelhança e deixou de contestar frontalmente a UE. A ideia passou a ser
torná-la uma fortaleza etnicamente homogênea, assediada embora por bárbaros de
outras cores e religiões. Por sorte, as recentes eleições gerais mantiveram um
centro relativamente forte e coeso, assim como um grupo dirigente em que tem
assento António Costa, valoroso socialista português.
Também nesse plano interno os radicais
norte-americanos são um caso à parte. Pensando a si mesmos de modo fechado,
agora imaginam doentiamente o país como o porto de chegada de milhões de
criminosos, terroristas e egressos de hospícios (sic ). Imigrantes envenenariam
o sangue e o solo pátrios, de modo que se justificariam, segundo os radicais, a
construção de campos de concentração e a expulsão massiva dos indesejados.
Mantida a ferro e fogo a América para os
americanos, a mais recente novidade é a formulação de um certo populismo
econômico, que explora o ressentimento dos “perdedores da globalização”,
basicamente os trabalhadores de menor formação educacional. Aqui, a “esquerda
brâmane” – termo cunhado pelo economista Thomas Piketty – é o alvo escolhido
para o exercício fundamental do nacional-populismo: a proposição de um eterno e
recorrente combate entre nós e eles, o povo e as elites. Como resultado final,
a miragem de um Partido Republicano transformado em partido de massas
trabalhadoras e de um welfare estruturado em bases nativistas.
Se esta breve descrição do laboratório ultraconservador fizer sentido, então teremos um roteiro para a reação dos democratas das mais diferentes orientações em todo o mundo. Entre outras iniciativas, reconectar econômica e socialmente “brâmanes” e gente comum. Reverter paulatinamente o nativismo e o fechamento corporativo das nações, dando à interdependência mais sentido e inteligibilidade. Fazer com que a política democrática readquira direitos sobre a economia, retirando desta a aparência de fenômeno fora de controle que arruína a vida de indivíduos e comunidades. E, por trás de cada uma destas formulações genéricas, a proposição mais modesta de que o voto sempre tem consequências e a democracia nunca é um exercício vazio, como este ano estratégico tem demonstrado nos mais variados lugares.
Um comentário:
Reunindo os diversos enfoques acima, Luiz Sérgio tece uma espécie de malha. Através dela passam focos de luz que, como trilhas de esperança, nos lembram que ainda há espaço para democracias, mesmo onde ela tem sido não só esquecida, mas até mesmo rechaçada.
Marcus Cremonese
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