O Globo
Numa discussão entre uma mulher branca e um
homem preto, quem tem razão? A cor da pele prevalece sobre o gênero?
Existe a lógica matemática (se A > B e B
> C, logo A > C) e existe a da brincadeira infantil em que a pedra amassa
a tesoura, que corta o papel, que embrulha a pedra. Nesta, cada elemento é
forte e fraco, maior e menor, vencedor e derrotado, a depender da
circunstância. Quem inventou esse jogo devia estar querendo ensinar às crianças
que tudo é relativo e — mais que isso — que o mundo dos adultos não é para
principiantes.
Com a distorção (intencional) do conceito de “lugar de fala”, critérios como etnia (equivocadamente chamada de “raça”), gênero (outrora conhecido como “sexo”) e orientação sexual passaram a ter mais relevância que os argumentos. Mas ninguém ainda definiu a hierarquia, o peso de cada um desses fatores.
Numa discussão entre uma mulher branca e um
homem preto, quem tem razão? A cor da pele prevalece sobre o gênero, assim como
a tesoura sobre o papel? E entre uma mulher cis e um homem trans? A identidade
de gênero será agora a pedra que esmaga a tesoura? Que categoria tem mais
créditos acumulados por opressões ancestrais e prioridade no resgate dessa
dívida (impagável, diga-se de passagem)? Por quem os sinos do Estado brasileiro
deveriam dobrar: por seu cidadão (porém judeu), assassinado por terroristas estrangeiros,
ou pelo líder do grupo terrorista (porém palestino) que o assassinou? Não
precisa responder — a pergunta é retórica.
Nos Jogos Olímpicos de Paris, a boxeadora
italiana Angela Carini, portadora de cromossomos XX, perdeu a luta contra a
argelina Imane Khelif, portadora de cromossomos XY. O embate desigual durou 46
segundos, e é preciso decidir se lamentamos a derrota de uma mulher para uma
pessoa com níveis de testosterona compatíveis com os de um corpo masculino ou
se comemoramos a vitória da ideologia sobre a biologia.
Houve recentemente episódios de racismo e
antissemitismo em escolas de elite. Era imperativo condenar a discriminação,
mas como agir com firmeza em relação aos agressores sem incorrer no igualmente
abominável delito do punitivismo? As instituições devem estar penando até agora
para descobrir uma receita de omelete que mantenha os ovos intactos e a
frigideira fria.
A democracia é melhor que um regime eleitoral
de viés totalitário, que é melhor que uma ditadura. Eleições limpas são
melhores que eleições suspeitas, e estas melhores que eleições fraudadas. Mas
se for de esquerda, a ditadura com eleições flagrantemente fraudadas (e o bônus
de 1.200 presos políticos e uma dúzia de mortos) há de prevalecer sobre a
democracia — pelo menos para o partido que nos governa e que se gaba de haver
salvado nossa periclitante vocação democrática. Em casos assim, cesse tudo o
que a musa humanista canta, que outro valor mais alto se alevanta: o do
antiamericanismo (ops, antiestadunidentismo), que é mais relevante que a causa
dos direitos humanos, da liberdade de pensamento e expressão, do combate à
corrupção, da preservação do meio ambiente, da proteção às minorias, da
erradicação da fome e da miséria etc.
Era bem mais simples quando não se precisava
recorrer a malabarismos para justificar escolhas racistas, sexistas,
excludentes, autoritárias, antidemocráticas. Quando os princípios éticos e a
vergonha na cara eram uma espécie de água, que levava a pedra, desfazia o papel
e enferrujava a tesoura. Sem contemporizações.
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