segunda-feira, 10 de março de 2025

Estamos aqui – Irapuã Santana

O Globo

O debate público se transforma numa disputa de identidades, onde não importa a coerência, mas a lealdade a um lado

Nos últimos anos, as redes sociais se tornaram o epicentro da polarização política, lugar onde os extremos encontram espaço para amplificar suas vozes. Antes hábito restrito a nichos e círculos ideológicos, agora é um espetáculo global. Assistimos a algumas das maiores contradições da contemporaneidade, e a recente premiação do filme “Ainda estou aqui” no Oscar é um exemplo perfeito.

O filme, produção nacional que alcançou reconhecimento num dos prêmios mais prestigiados do mundo, deveria ser motivo de celebração. No entanto parcela dos autoproclamados “patriotas” rejeitou a conquista simplesmente por não se identificar com os ideais políticos que associam à obra ou a seus realizadores. O que antes era discurso de valorização da cultura nacional cedeu espaço à torcida contra, apenas porque o filme não correspondia a suas expectativas ideológicas.

Do outro lado do espectro político, a hipocrisia se manifesta de forma igualmente evidente. Muitos daqueles para quem bilionários não deveriam existir não hesitaram em enaltecer o diretor do filme, cujos financiadores e circuitos de exibição passam por conglomerados empresariais gigantescos. A crítica ao grande capital, tão presente no discurso progressista, parece ser momentaneamente esquecida quando um artista ou intelectual de sua linha política se beneficia dele.

Não é difícil imaginar que, se fosse um filme “de direita”, a situação se inverteria. Enquanto a esquerda ressaltaria que o sucesso do filme só foi possível graças ao grande capital, desmerecendo a conquista, a direita celebraria efusivamente que a cultura nacional está fortíssima.

Isso se alastra para outras ideologias. Liberais, que tradicionalmente defendem o livre mercado, apoiam Donald Trump, mesmo quando ele impõe tarifas de importação e fecha o mercado americano numa política protecionista que vai contra os princípios do liberalismo econômico. Da mesma forma, a direita, que antes defendia a Ucrânia na guerra contra a Rússia, agora se une à esquerda para criticar o presidente ucraniano, dando realidade à teoria da ferradura, segundo a qual os extremos do espectro ideológico — extrema direita e extrema esquerda — se aproximam em diversos aspectos.

Essas mudanças de posicionamento deixam claro que a fidelidade a um grupo político sempre se sobrepõe à coerência ideológica.

O caso do Oscar é apenas reflexo de fenômeno mais profundo: a política, antes de ser campo de argumentação racional, é movida pelo sentimento. No ambiente digital, onde tudo acontece em tempo real, as reações impulsivas são incentivadas e rapidamente amplificadas. A sensação de pertencimento a um grupo fortalece as respostas emocionais, tornando-as mais rígidas e resistentes à reflexão crítica.

O debate público se transforma em disputa visceral de identidades. Não importa a coerência, mas a lealdade a um lado, de modo que a força do argumento perde para a intensidade do grito, em que um lado sempre fortalece o outro, enquanto todos ainda estamos aqui.

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