O Globo
O debate público se transforma numa disputa
de identidades, onde não importa a coerência, mas a lealdade a um lado
Nos últimos anos, as redes sociais se
tornaram o epicentro da polarização política, lugar onde os extremos encontram
espaço para amplificar suas vozes. Antes hábito restrito a nichos e círculos
ideológicos, agora é um espetáculo global. Assistimos a algumas das maiores
contradições da contemporaneidade, e a recente premiação do filme “Ainda estou
aqui” no Oscar é um exemplo perfeito.
O filme, produção nacional que alcançou reconhecimento num dos prêmios mais prestigiados do mundo, deveria ser motivo de celebração. No entanto parcela dos autoproclamados “patriotas” rejeitou a conquista simplesmente por não se identificar com os ideais políticos que associam à obra ou a seus realizadores. O que antes era discurso de valorização da cultura nacional cedeu espaço à torcida contra, apenas porque o filme não correspondia a suas expectativas ideológicas.
Do outro lado do espectro político, a
hipocrisia se manifesta de forma igualmente evidente. Muitos daqueles para quem
bilionários não deveriam existir não hesitaram em enaltecer o diretor do filme,
cujos financiadores e circuitos de exibição passam por conglomerados
empresariais gigantescos. A crítica ao grande capital, tão presente no discurso
progressista, parece ser momentaneamente esquecida quando um artista ou
intelectual de sua linha política se beneficia dele.
Não é difícil imaginar que, se fosse um filme
“de direita”, a situação se inverteria. Enquanto a esquerda ressaltaria que o
sucesso do filme só foi possível graças ao grande capital, desmerecendo a
conquista, a direita celebraria efusivamente que a cultura nacional está
fortíssima.
Isso se alastra para outras ideologias.
Liberais, que tradicionalmente defendem o livre mercado, apoiam Donald Trump,
mesmo quando ele impõe tarifas de importação e fecha o mercado americano numa
política protecionista que vai contra os princípios do liberalismo econômico.
Da mesma forma, a direita, que antes defendia a Ucrânia na guerra contra a
Rússia, agora se une à esquerda para criticar o presidente ucraniano, dando
realidade à teoria da ferradura, segundo a qual os extremos do espectro
ideológico — extrema direita e extrema esquerda — se aproximam em diversos
aspectos.
Essas mudanças de posicionamento deixam claro
que a fidelidade a um grupo político sempre se sobrepõe à coerência ideológica.
O caso do Oscar é apenas reflexo de fenômeno
mais profundo: a política, antes de ser campo de argumentação racional, é
movida pelo sentimento. No ambiente digital, onde tudo acontece em tempo real,
as reações impulsivas são incentivadas e rapidamente amplificadas. A sensação
de pertencimento a um grupo fortalece as respostas emocionais, tornando-as mais
rígidas e resistentes à reflexão crítica.
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