segunda-feira, 10 de março de 2025

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Congresso adota agenda de fundo corporativista

O Globo

Em vez de tratar de preocupações da população, parlamentares elegem pauta ditada pelos próprios interesses

Findo o recesso de carnaval, os congressistas parecem ter escolhido suas prioridades na pauta de votações. Nenhuma tem a ver com as maiores preocupações da população, saúde e segurança. Vencidos, graças ao acordo com o Supremo, os obstáculos para liberar emendas parlamentares, o principal objetivo do Parlamento mantém-se o mesmo: defender os próprios interesses. No topo da lista, estão propostas de mudanças na legislação eleitoral, que precisam ser aprovadas até outubro para valerem já nas eleições de 2026.

A mais preocupante altera a Lei da Ficha Limpa, facilitando o acesso às urnas dos criminosos condenados em segunda instância. Pronta para ir ao plenário, ela deveria ser engavetada ou rejeitada por qualquer parlamentar preocupado com a infiltração do crime nas instituições da República.

Também formou-se consenso no comando das duas Casas legislativas de que as mudanças no Código Eleitoral e a minirreforma eleitoral, aprovadas na Câmara e estacionadas no Senado, devem avançar. Caberá à Comissão de Constituição e Justiça do Senado recolocá-las em tramitação. É compreensível que o assunto esteja no radar, mas não é aceitável que seja motivo para mudar regras que, em vez de alteradas, precisam antes ser cumpridas.

Entre as ideias em discussão, há desde a proposta de flexibilizar a cota feminina para candidatos ao Legislativo até o afrouxamento das normas para prestação de contas partidárias. Uma das mudanças de interesse dos políticos é limitar a R$ 30 mil as multas por falhas na prestação de contas, valor sem qualquer proporcionalidade com as cifras que o Tesouro transfere às legendas (apenas para o fundo eleitoral das eleições municipais do ano passado foram destinados quase R$ 5 bilhões).

Outra ideia insensata na proposta de Código Eleitoral determina que pesquisas de opinião apresentem “taxas de acerto”, conceito sem nenhum respaldo científico. Não cabe à Justiça Eleitoral apontar as melhores pesquisas, apenas zelar pela transparência delas. Também é inaceitável um “jabuti”, inserido na minirreforma eleitoral, substituindo por multa a cassação de mandato em casos de compra de votos. Uma terceira pauta corporativista perigosa prevê o aumento no número de deputados de 513 para 527. Para não ajustar as bancadas de estados pelo último Censo, há o risco de o Congresso aumentar o custo do Legislativo, sem proveito algum para a democracia.

Outros projetos visam a enfraquecer a Justiça Eleitoral. Um deles estabelece o regime de anualidade para resoluções do Tribunal Superior Eleitoral, inspirado na regra estipulada na legislação tributária. Para impostos, é sensato que alterações feitas num ano só entrem em vigor no próximo exercício, mas é descabido usar o mesmo princípio para normas eleitorais.

Há todo tipo de ideia estapafúrdia entre os projetos apresentados. Se não houver filtro nas comissões e bom senso das lideranças, o risco é serem aprovadas. Também existem, é verdade, boas ideias, como a que cria uma quarentena de quatro anos para militares, promotores ou juízes disputarem eleições depois de deixar o cargo. Os novos presidentes da Câmara e do Senado, Hugo Motta (Republicanos-PB) e Davi Alcolumbre (União-AP), têm a missão de manter nas gavetas pautas de interesse exclusivo de políticos, cuja aprovação depõe contra a imagem do próprio Congresso — e de levar adiante apenas mudanças ditadas pela sensatez.

Choques de pássaros com aviões exigem medidas mais eficazes

O Globo

Há mais de dez colisões por dia. Para evitar acidentes, é preciso retirar aves de perto dos aeroportos

As colisões de aves com aviões no Brasil triplicaram entre 2011 e 2023, chegando a 4.329 — quase 12 por dia. No ano passado houve ligeira queda, para 3.461, mas 2024 foi o segundo ano com mais incidentes nos últimos 14. Mantido o ritmo desde janeiro, 2025 chegará perto de 3.800. As regiões próximas aos aeroportos apresentam maior risco. Nove em dez choques acontecem nessas áreas, onde as aeronaves voam mais baixo logo após decolar ou ao aterrissar. Diante desse quadro, os órgãos de controle devem exigir dos administradores dos aeroportos ações mais eficazes contra a presença de aves nas redondezas.

A ocupação de voos domésticos e internacionais em 2024 voltou ao patamar anterior à pandemia. Ao todo, 118,3 milhões foram transportados, 5,6 milhões a mais que em 2023. Neste ano a marca deverá ser quebrada (janeiro e fevereiro começaram aquecidos). Só nos primeiros 30 dias de 2025, houve aumento de 800 mil passageiros em relação ao mesmo período de 2024.

Na penúltima semana de fevereiro, um avião da Latam com destino a São Paulo colidiu com um pássaro ao decolar do Aeroporto Tom Jobim/Galeão, no Rio. O bico do Airbus, com 200 pessoas a bordo, foi destroçado, e a aeronave foi obrigada a retornar. Na semana seguinte, um avião da Gol que fazia o trajeto entre Brasília e Congonhas também precisou voltar à origem depois do choque com uma ave. Para os passageiros, esses episódios têm sido causa de tensão e transtorno. Para as empresas, são prejuízo. Como revelou reportagem do GLOBO, o Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Cenipa) estima em US$ 7,5 milhões o custo anual com consertos.

Nos Estados Unidos, 76 pessoas morreram em aviões civis e militares entre 1988 e 2023 devido a choques com animais, a maioria aves. Com tráfego aéreo intenso, o país registra 54 colisões por dia, 3,6% com danos. A mais famosa teve final feliz. Em 2009, um avião decolou de Nova York, bateu em gansos e, graças à perícia do piloto, fez pouso heroico nas águas geladas do Rio Hudson. Todos saíram vivos. Em 2019, um avião da Ethiopian Airlines não teve a mesma sorte. Caiu entre Adis Abeba e Nairobi, matando 157. Análise posterior revelou que um pássaro deve ter avariado um sensor e provocado a queda. A causa de um acidente na Coreia do Sul em dezembro ainda é investigada, mas a hipótese mais plausível é também o choque com aves.

Uma das explicações para o aumento de casos no Brasil é a queda na subnotificação, com a cultura mais consolidada de registro de choques. Além disso, quanto maior o tráfego aéreo, mais altas as chances de acidentes com aves. Nalguns aeroportos, a situação é mais grave. Porto Alegre, historicamente décimo em movimentação de passageiros, aparece como segundo em incidentes. Salvador também registra colisões acima da média. É urgente que as equipes de biólogos responsáveis pelo controle de aves nas áreas mais críticas tomem precauções para evitar choques, atrasos, acidentes aéreos fatais, danos para as empresas e, além de tudo o mais, a morte dos animais.

Economia chega perto de seu limite e vai desacelerar

Valor Econômico

O vigor da economia a curto prazo dependerá da inflação, da agricultura e da política fiscal do governo Lula

A economia brasileira cresceu 3,4% no ano passado e teve seu melhor desempenho desde 2011. O nível de emprego bateu recorde, os salários subiram acima da inflação, os investimentos e o consumo das famílias se expandiram, houve crédito disponível em abundância, mas tudo isso pode já estar no passado. Um quadro como esse, em que o Brasil completa quatro anos consecutivos de avanços e que tem grande respaldo no incentivo ao consumo, produziu, por seus desequilíbrios, uma inflação em alta, que ultrapassou as metas. Os gastos públicos impulsionaram as atividades econômicas, que já avançavam com bom ímpeto, levando o país a crescer acima de sua capacidade - mais uma vez. No último trimestre do ano vieram os sinais de mudanças que se consolidarão nos próximos meses. O consumo das famílias teve sua primeira queda em 13 trimestres e o PIB do último trimestre, em relação ao anterior, avançou apenas 0,2%.

O desempenho agora teve quase o mesmo esplendor do período 2011-2013, que reuniu alguns dos melhores indicadores econômicos do século. Tem também os indícios da repetição de erros de política econômica que levaram à pior recessão em 100 anos, durante o governo Dilma Rousseff. Os gastos públicos explodiram em 2010, ano eleitoral, e mal caíram depois. A inflação pulou para dois dígitos e as contas públicas mergulharam no déficit em 2014 pela primeira vez desde 2000 e, sem artifícios, seguiram por mais uma década.

O desfecho será diferente se o governo agir de maneira distinta à que agiu o governo petista de Dilma, mas isto está longe de ser uma certeza. Ao contrário do Banco Central na gestão Dilma, o atual, independente, continua elevando os juros e o fará novamente este mês, para taxa altamente contracionista de 14,5%. Com a dose de aperto monetário por meses, a economia deveria estar desacelerando, porque a política fiscal é estimulativa e a inflação continua subindo.

Com os números do último trimestre de 2024, há um consenso de que a economia perderá fôlego aos poucos, provavelmente com mais intensidade a partir do terceiro trimestre. As expectativas da equipe econômica e do BC não diferem muito das dos analistas privados. Os primeiros projetam um ritmo de 2,3% e o boletim Focus, 2%. Os erros de estimativa sobre o comportamento do PIB são grandes, e há hoje um cenário externo muito complexo e instável como raramente se viu, após Donald Trump na Presidência dos EUA.

A economia se beneficiou no ano passado de juros menores. A Selic só começou a subir em setembro e a média de 2024 foi de 10,9%, bem mais baixa do que haverá em 2025, com uma taxa que ruma para os 15% e se manterá alta ao longo do ano. Ela deve desestimular os investimentos, como já começou a fazer - cresceram 7,3% no ano, mas apenas 0,4% no último trimestre em relação ao terceiro. O aquecimento das atividades estimulou as importações, que avançaram mais que as exportações, levando o setor externo a subtrair 1,8 ponto do crescimento do PIB. A equação pode até se inverter em 2025. As compras do exterior de bens e serviços subiram 14,7% no ano, mas caíram 0,1% no último trimestre.

O vigor da economia a curto prazo dependerá da inflação, da agricultura e da política fiscal do governo Lula. A alta dos preços derrubou o consumo no fim do ano, assim como os juros para combatê-la deverão fazer o crédito disponível encolher a um dígito de expansão. Se a inflação resistir a cair, o PIB pode crescer menos que o previsto. Mas poderá crescer até um pouco mais, se a safra recorde colhida se igualar aos salto de 16,3% de 2023. O governo pode dar mais fôlego à economia, rumando na direção contrária ao da política monetária, com estímulos fiscais e creditícios. Isso trará inflação e mais juros na sequência, diminuindo de qualquer forma o ritmo da economia mais à frente.

A taxa de investimento cresceu de 16,4% para 17% em 2024, enquanto a poupança declinou de 15% para 14,5%. Além de o investimento ser há muito tempo insuficiente para dotar a economia de um potencial de crescimento maior, seu descolamento da poupança obrigará a encontrar financiamento na poupança externa. Um dos efeitos é que o déficit de transações correntes no balanço de pagamentos subiu de 1,11% do PIB em janeiro de 2024 para 3,02% do PIB em janeiro último.

As despesas de consumo da administração pública, que retornaram ao pico, antes ocorrido no final de 2014, voltaram a subir no ano eleitoral de 2022, com Jair Bolsonaro, e bateram um recorde desde 2012 no quarto trimestre, considerada a série com preços de 1995 com ajuste sazonal. Ao exibir déficits, o governo se financia com dívida em volumes crescentes. As necessidades líquidas de financiamento atingiram no último trimestre do ano R$ 286, 4 bilhões, o maior valor desde 2008.

O Brasil se livrou do estrangulamento externo há um bom tempo, mas a situação mudou um pouco. Como observa o economista Fabio Giambiagi, em O Globo (7/3), o país deixou de ser um credor líquido. No fim de 2024, a dívida bruta atingiu US$ 348 bilhões e voltou a ser maior que as reservas, que em dezembro, somavam US$ 330 bilhões.

Caso Ibaneis deveria servir de alerta para Moraes

Folha de S. Paulo

A pedido da PGR, ministro do STF arquiva inquérito sobre suposta relação do governador do DF com ataque de 8 de janeiro

Dois anos depois, foi arquivado o inquérito que investigava o governador do Distrito FederalIbaneis Rocha (MDB), por suposto envolvimento nos ataques às sedes dos Poderes de 8 de janeiro de 2023.

A decisão, assinada por Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, deveria estimular o próprio ministro a conduzir avaliação criteriosa dos procedimentos que, sob a louvável bandeira da defesa da democracia, tem adotado nos últimos anos.

Em circunstâncias normais, o arquivamento de um inquérito seria fato corriqueiro. Investigações, afinal, não pressupõem culpa; elas servem para que os órgãos competentes apurem o que ocorreu em determinada situação. Quando os elementos colhidos não justificam a instauração de um processo judicial, interrompe-se a tramitação do caso.

Ibaneis, contudo, não se viu apenas investigado. Durante pouco mais de dois meses, por ordem de Moraes, ele permaneceu afastado do cargo de governador para o qual havia sido eleito em 2022.

Foi uma determinação problemática sob diversos ângulos, a começar pela intromissão indevida do Judiciário em outro Poder. Apear da cadeira o chefe do Executivo —prefeito, governador, presidente— não pode ser atitude banal. É preciso haver um conjunto robusto de evidências a embasar medida tão drástica.

À época, Moraes considerou necessário o afastamento para impedir que Ibaneis destruísse provas sobre possíveis omissões que teriam permitido as ações tresloucadas em Brasília.

Como fica claro agora, não havia evidências sobre esse risco. Ao contrário, o relatório do procurador-geral da República, Paulo Gonet, afirma ter encontrado documentos pelos quais o governador do DF repudiou os ataques e solicitou auxílio da Força Nacional para proteção da ordem pública.

Ainda pior, a suspensão da função de Ibaneis se deu sem que tenha sido formulado pedido específico para isso. O que havia, em ação impetrada pela Advocacia-Geral da União e pelo líder do governo no Congresso NacionalRandolfe Rodrigues (PT-AP, à época na Rede), era a solicitação da prisão em flagrante de todos os envolvidos.

Foi com base nessa formulação geral que Moraes deu sua canetada contra o governador, argumentando que o afastamento é menos gravoso que a prisão. Esqueceu-se de ponderar que ninguém pediu a prisão de Ibaneis e que é preciso haver bons motivos para prender qualquer pessoa.

Para coroar a atitude draconiana, Moraes tomou a decisão sozinho e só depois buscou o referendo dos colegas, que o fizeram de forma virtual. Seria melhor que o STF entendesse, de uma vez por todas, que momentos tão relevantes como esse demandam a força do colegiado, com discussões no plenário físico.

Mais importante, os ministros do Supremo precisam perceber que, ao atropelar certas garantias processuais, eles maculam a mesma democracia que, com razão, pretendem defender.

A saúde de Sísifo em território yanomami

Folha de S. Paulo

Mortes causadas por malária caem, mas casos da doença sobem; reprimir garimpo não basta para acabar com crise sanitária

São bem-vindos os avanços na situação de saúde entre os yanomami nos últimos dois anos, como a redução no número de mortes.

Contudo os espectros da malária e da desnutrição permanecem, a demonstrar que a eficácia de políticas públicas não depende apenas de boas intenções. É preciso, ademais, ampliar a transparência dos dados.

Luiz Inácio Lula da Silva (PT) reverteu medidas desumanas de Jair Bolsonaro (PL), que alinhava-se a interesses de garimpeiros ilegais. Milhares deles invadiram o território yanomami levando destruição ambiental, vetores de doenças e caos social.

Com o estopim da crise sanitária em 2023, a gestão federal expulsou invasores e reconstruiu a atenção básica à saúde na remota e extensa terra indígena.

Segundo o Planalto, entre 2023 e 2024, as mortes causadas por malária recuaram 35%, e as por desnutrição, 68%. O governo atribui o êxito ao aumento de 155% no

Entretanto os casos registrados da doença subiram de 14 mil para 18 mil. O salto pode ser explicado em parte pelo acréscimo de 73% no número de testes. Mesmo assim, trata-se de incidência escandalosa, dado que a população local soma 32 mil pessoas.

Há explosão de infecção respiratória aguda, com alta de 272%. Foram 11.484 casos notificados no primeiro semestre de 2024, ante 3.133 no mesmo período de 2023.

O déficit nutricional entre crianças menores de cinco anos de idade se estabilizou, mas continua a representar um fator de risco para aquelas acometidas por infecções das vias aéreas.

Com tal cenário epidemiológico, portanto, uma situação de emergência sanitária persiste.

Apesar da menor presença de forasteiros para infectar indígenas, a perturbação do ambiente ocasionada pelo garimpo multiplicou criadouros de mosquitos transmissores de patógenos. O plasmódio da malária, por exemplo, parece estar circulando de modo sustentado entre os próprios indígenas.

A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) reivindica que o governo federal produza informações mais detalhadas e frequentes sobre a saúde yanomami. Elas são decisivas para reorientar o enfrentamento do problema, que não pode mais se limitar a prevenir casos graves e demandaria impedir também os leves, para interromper a circulação de patógenos.

Expulsar 90% dos garimpeiros ilegais do território, já se vê, foi somente o primeiro passo.

 O custo do prêmio a devedores contumazes

O Estado de S. Paulo

Para ajudar os Estados mais ricos e encalacrados do País, governo Lula ignora recomendação do Ministério do Planejamento, omite dados e aceita abrir mão de receitas de quase R$ 1,3 tri

Já se sabia que o governo federal subestimava o custo do projeto de renegociação das dívidas estaduais, mas nem o crítico mais pessimista seria capaz de imaginar que o Executivo estaria disposto a abrir mão de quase R$ 1,3 trilhão em receitas financeiras até 2048 para ajudar os Estados mais encalacrados do País. O valor foi calculado pelo próprio Tesouro Nacional, mas só veio a público após um pedido feito por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI) pelo jornal Folha de S.Paulo.

A depender do atendimento a algumas das condições previstas no projeto, que podem reduzir o juro real do empréstimo a zero, a União renunciará a cerca de R$ 1,285 trilhão em receitas financeiras ao longo de mais de 20 anos; com juro real a 2% ao ano, a perda seria de R$ 793,65 bilhões até 2047. Os dois cenários consideram a adesão de todos os Estados ao Programa de Pleno Pagamento da Dívida dos Estados (Propag).

Esses cálculos, no entanto, ainda podem ser considerados otimistas, pois supõem que a União terá um ganho de R$ 162,5 bilhões em ativos cedidos pelos Estados para abater parte de suas dívidas, como ações de estatais estaduais. A história recente da federalização de empresas públicas de Estados prova o oposto. Na prática, elas costumam se converter em sumidouro de recursos e espaço para acomodar aliados políticos muito bem remunerados.

Diante de números assombrosos, agora se entende por que, durante a tramitação do projeto no Legislativo, o governo preferiu divulgar somente a renúncia com a qual teria de arcar ao longo dos primeiros cinco anos de vigência do programa. De posse de dados sobre o impacto integral da proposta, talvez os parlamentares tivessem se posicionado de maneira diferente, sobretudo os que representam Estados que estão com as contas em dia.

Afinal, 90% das dívidas estão concentradas em São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, os Estados mais ricos do País. São eles, portanto, os grandes beneficiários do programa, e só mesmo o fato de serem atualmente administrados por partidos de oposição justifica as críticas de seus governadores.

Embora costume ser tratada como algo menor pelo mercado financeiro, a repactuação das dívidas estaduais é fonte de grande preocupação para especialistas em contas públicas. As recorrentes renegociações, ainda que não afetem o limite de despesas nem as metas fiscais da União, causam impactos relevantes na trajetória da dívida pública no médio e longo prazos.

Se o endividamento cresce, o custo de rolagem da dívida também tende a subir. Logo, um governo como o de Lula da Silva, obcecado com a redução da Selic, jamais poderia se dar ao luxo de menosprezar o assunto e ignorar a opinião dos técnicos.

Mesmo sem ter acesso aos números do Tesouro, o Ministério do Planejamento recomendou veto integral ao projeto, por ver no texto um reforço à “cultura de dependência dos Estados em relação à ajuda federal para equilibrar suas contas”.

“Esse tipo de renegociação das dívidas estaduais cria um viés de risco moral que se consolida no ciclo vicioso: os Estados continuam gastando irresponsavelmente; os Estados esperam novas negociações; a União acaba absorvendo os prejuízos, aumentando sua própria dívida pública”, disse o parecer do Planejamento.

E não se deve eximir o Ministério da Fazenda dessa irresponsabilidade. Embora a autoria do projeto aprovado seja do senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), foi a própria pasta que abriu essa caixa de Pandora ao apresentar o controverso “Juros por Educação”, que propunha a redução do indexador das dívidas dos Estados que aceitassem investir no ensino técnico.

O projeto é um exemplo do que não se deve fazer na área de políticas públicas. Afinal, num momento em que os Estados nadavam em receitas e ampliavam despesas, o governo optou por incentivá-los a gastar ainda mais, premiar caloteiros contumazes e punir administradores que se preocupam com a saúde das contas públicas de seus Estados. Por tudo isso, uma coisa é certa: não será a última rodada de renegociação de dívidas estaduais.

O Brasil se arma para a guerra comercial

O Estado de S. Paulo

PL no Senado sinaliza que as autoridades estão preparando de maneira madura um arsenal que defenda, a um tempo, os interesses nacionais e as regras do comércio internacional

O presidente americano, Donald Trump, gosta de dizer que guerras comerciais são fáceis de vencer. Entre as falsidades repetidas por Trump, essa é uma das que têm maior potencial destrutivo, mas também uma das mais fáceis de desmoralizar. Ninguém ganha com guerras comerciais – na melhor das hipóteses, há quem perca menos. Diferentemente das guerras convencionais, o combatente mais agressivo é sempre quem mais se autoinflige danos, e a melhor estratégia é sempre desescalar, reduzindo danos internos e respondendo com retaliações cirúrgicas, menos como quem quer destruir um inimigo e mais como quem quer ajudar um amigo (no caso, um parceiro comercial) a recobrar a razão.

Manter essas perspectivas em mente é importante num momento em que o Brasil elabora estratégias para navegar na maré protecionista global e constrói arsenais para se defender das ameaças do país mais rico e poderoso do planeta de implodir as regras do comércio internacional e abrir fogo contra todos.

O Senado tomou a iniciativa de retomar a tramitação de um projeto de lei (PL) que equipa o governo com instrumentos de retaliação. Em condições normais, seria preciso recorrer à Organização Mundial do Comércio (OMC) contra práticas abusivas. Mas, pela sabotagem dos EUA, o órgão de apelação da OMC para solução de controvérsias está paralisado.

Sintomaticamente, o PL 2.088/2023 foi de início elaborado para defender exportadores agrícolas brasileiros contra restrições impostas seletivamente por legislações ambientais da Europa. Ante a agressividade trumpista, a relatora, senadora Tereza Cristina (PP-MS), ampliou o escopo para responder a outros tipos de ações unilaterais, autorizando a Câmara de Comércio Exterior a restringir importações ou suspender concessões comerciais, de investimento e de obrigações relativas à propriedade intelectual ou previstas em acordos comerciais.

Indagado sobre as ameaças tarifárias de Trump, o presidente Lula da Silva costuma invocar a taxação recíproca de produtos americanos. Esse posicionamento vago, se comunicado sem um ânimo de provocação, é defensável. Ele preserva um senso de orgulho patriótico escorado numa justiça retributiva fácil de intuir. “Simples, não tem nenhuma dificuldade”, disse Lula. Mas a verdade é que uma resposta inteligente é complexa e difícil.

Dadas as assimetrias entre dois países em conflito, uma reciprocidade meramente matemática pode ser muito mais danosa ao agredido que ao agressor. Os EUA, por exemplo, são um dos maiores parceiros comerciais do Brasil, mas a recíproca não é verdadeira; a tarifa média do Brasil sobre produtos importados dos EUA é de 11,2%, e a dos EUA sobre o Brasil, só de 1,5%; as exportações brasileiras são mais focadas em produtos básicos, e as importações, em maquinário, e assim por diante.

Uma estratégia inteligente precisa, em primeiro lugar, estar integrada a um esforço amplo pela manutenção das regras comerciais internacionais e reformas da OMC e pela ampliação de parcerias que diversifiquem a rede comercial do Brasil. Além disso, ela precisa considerar áreas de interesses extracomerciais com o país ou bloco em conflito, mapeando convergências e divergências e privilegiando um engajamento bilateral que evite a imposição de tarifas.

Retaliações devem ter um caráter tático dentro dessa estratégia maior e ser o último recurso, sempre com o objetivo de conter – não incentivar – uma escalada tarifária. A análise introdutória do PL 2.088 reconhece isso e afirma que os instrumentos contemplados foram formulados “de maneira compassada de modo a deixar aberto espaço para negociação, tendo em vista que o objetivo não é punir o parceiro comercial”.

O fato de que uma parlamentar de oposição esteja articulando com órgãos subordinados ao governo, como os Ministérios das Relações Exteriores e da Indústria e Comércio, a criação de um repertório de respostas institucionais, técnicas e sistêmicas, e não politizadas, voluntaristas e arbitrárias, é um sinal alvissareiro de que há autoridades em Brasília trabalhando com maturidade para defender os interesses nacionais em meio à tempestade comercial que se aproxima.

Uma usina de bônus

O Estado de S. Paulo

Sem encontrar solução definitiva para Itaipu, o governo tenta ‘tourear’ tarifas da usina

Em janeiro, a energia elétrica ficou 14,21% mais barata graças ao bônus de R$ 1,3 bilhão na energia gerada pela hidrelétrica de Itaipu em 2023, incorporado com atraso como desconto aos consumidores nas contas de luz. Foi uma queda pontual, mas produziu efeito imediato no IPCA, que subiu apenas 0,16% naquele mês. Agora em março, um decreto assinado por Lula da Silva suspendeu o aumento tarifário de 6% que seria necessário para compensar um saldo negativo milionário na conta de comercialização da usina binacional em 2024.

E assim o governo tenta tourear aumentos no custo da energia de Itaipu com potencial para desencadear pressões inflacionárias em série na economia. Mas o faz de forma quase improvisada, tirando de um lado para cobrir outro. O decreto de Lula que autoriza a criação e o uso de um saldo financeiro para Itaipu foi baixado para cumprir exigência da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), que espera, desde o fim do ano passado, solução para uma conta que se sabia que não fecharia.

Fosse um governo corajoso, não teria pagado o bônus que reduziu as contas de janeiro e teria usado o valor para evitar o reajuste previsto para março. Por isso, o escarcéu lulopetista em torno do decreto de Itaipu soa despropositado. Gleisi Hoffmann, a nova ministra da Secretaria de Relações Institucionais (SRI), correu às redes sociais para exaltar a medida, afirmando que Itaipu está contribuindo para reduzir custos para o comércio, a indústria e as famílias.

Na verdade, o governo não tem encontrado uma solução definitiva para Itaipu, uma usina administrada e operada em conjunto com o governo do Paraguai. Apenas adota soluções paliativas, como, aliás, tem feito em relação a tudo o que se refere à questão inflacionária. O freio da inflação em janeiro, obtido pela queda no custo da energia com o bônus de Itaipu, com certeza será revertido em fevereiro. A taxa do mês será divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no dia 12, mas a forte alta de 1,23% do IPCA-15 do mês – espécie de prévia da taxa mensal – já é suficiente para mostrar que o alívio do mês anterior foi de fato um ponto fora da curva.

Os preços, especialmente dos alimentos, continuam pressionados, e uma eventual alta no custo da energia elétrica intensificaria ainda mais a inflação. Descontos pontuais como o do bônus distribuído em janeiro, ou o represamento do reajuste de março, têm fôlego curto na formação da inflação. No caso da energia elétrica, é preciso haver medidas definitivas, como, por exemplo, uma revisão arrojada de todos os penduricalhos incorporados às contas de luz, alguns apenas para atender a interesses políticos e cartoriais.

O decreto de Itaipu permite criar uma reserva técnica financeira formada a partir do uso de parte dos bônus tarifários para atenuar reajustes de tarifa de uma usina que quitou, em 2023, todo o seu custo de construção ao longo de cinco décadas, algo em torno de US$ 13 bilhões. Deveria, portanto, estar em fase de redução natural de custos.

A justiça climática é urgente

Correio Braziliense

No Brasil, não faltam exemplos emblemáticos de desastres climáticos potencializados por desigualdades históricas e má gestão do território

As mudanças climáticas são uma realidade global e têm afetado a população em todos os continentes. Mas o que também está evidente é que as consequências do fenômeno atingem de forma desigual as pessoas, agravando as diferenças sociais. Hoje, barrar o avanço dessas discrepâncias é tão importante quanto combater a degradação do meio ambiente.

A justiça climática — conceito cada vez mais defendido por cientistas e especialistas de diversas áreas — busca conscientizar sobre a desigualdade dos impactos do aquecimento do planeta e dos eventos extremos. Com o objetivo de fazer com que parte dos investimentos seja destinada para proteger grupos de maior vulnerabilidade, o tema ganha espaço na sociedade.

Dados do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) indicam que entre 3,3 bilhões e 3,6 bilhões de indivíduos estão em um contexto de alto risco diante da crise ambiental. Comunidades historicamente marginalizadas por gênero, raça e renda são as principais afetadas. Além de uma perda imensa da biodiversidade, o que piora a qualidade de vida dessas coletividades, a quantidade de vítimas é assustadora. A Organização Meteorológica Mundial (OMM) calcula que mais de 2 milhões de mortes foram causadas por desastres naturais — e esse número se refere ao período de 1979 a 2019, sem considerar os recentes episódios registrados pelo mundo.

O agravamento da crise, portanto, exige ações que unam ciência e políticas públicas, mas sem deixar de ouvir os atingidos. As soluções devem ser elaboradas respeitando o contexto do cotidiano das pessoas, sob pena de não surtirem o resultado necessário. A descarbonização da economia e o desenvolvimento sustentável são pautas macro e urgentes, porém não se pode deixar de lado, por exemplo, a retirada de comunidades de locais de risco.

Deficiências estruturais históricas precisam ser sanadas no Brasil e em outros países. E, nesse mapa, equilibrar responsabilidades e obrigações tem de ser uma tarefa encarada por lideranças globais. Programas de assistência financeira, desenvolvimento de tecnologias de adaptação, criação de mecanismos de compensação ambiental e distribuição de recursos precisam sair da esfera de debates e chegar às populações.

Os conflitos das grandes potências diante de decisões que reduzam os danos climáticos tornam-se fatais para o futuro do planeta. Fracassos como o visto na COP29, ano passado, em Baku, no Azerbaijão, quando não se conseguiu estabelecer um acordo satisfatório para o financiamento das ações de combate às mudanças no clima em nações menos desenvolvidas, não são mais possíveis.

A justiça climática precisa ser um compromisso das nações, envolvendo governos, iniciativa privada e sociedade. No Brasil, não faltam exemplos emblemáticos de desastres climáticos potencializados por desigualdades históricas e má gestão do território. Diante desse contexto complexo e acelerado, é fundamental discutir as intensidades desiguais das consequências dos fenômenos. O país encara desafios enormes — alguns deles herança de séculos. Enfrentar as contradições e atualizar a agenda para alinhar desenvolvimento com sustentabilidade são pautas imprescindíveis. Mas sem perder o foco do direito de todos por uma vida digna. 

 

 

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