O Globo
Ouvi a simpática conversa entre Lula da
Silva e Walter
Salles pela conquista do Oscar. Mais uma
ação de marketing do ministro Sidônio — parabéns. Outra marca de diferença com
o ex-presidente Bolsonaro, um ser incapaz sequer de velar pela memória de João
Gilberto.
Salles já declarou que “Ainda estou
aqui” não teria sido produzido sob o governo do capitão. Este retrucou,
dizendo que jamais buscou a censura. Mentiu de novo. “Marighella”, dirigido por
Wagner Moura e tendo Seu Jorge como protagonista, só chegou ao público depois
de superar vários senões burocráticos construídos por seus acólitos, com a
intenção não disfarçada de boicote à história do ex-militar que se tornou
guerrilheiro. Ao ser lançado, o filme teve boas plateias e ajudou a colocar na
ordem do dia a revisão de um período ainda mantido sob o tapete na História
brasileira. Neste momento, deixemos Bolsonaro de lado, um morto-vivo prestes a
iniciar seu percurso no cárcere.
O telefonema de Lula da Silva a Salles, sob a incerteza de uma reforma ministerial, talvez pudesse mostrar uma inflexão no identitarismo marcante na formação inicial do governo e nos empecilhos de sua alarmante política cultural.
Ainda recordo a chuva de protestos de
leitores e amigos petistas quando ironizei a subida na rampa de Lula e aquela
trupe no dia da posse. Era o marketing inicial do janjismo. Até um cãozinho
estava lá — faltavam representantes felinos, o que não provocou protestos da
classe, mas havia papagaios de pirata bem representados. O espírito orientou a
montagem de governo com a nomeação de ministros dentro da cepa wokista
tupiniquim. Uma ministra mulher financiada pelo jogo do bicho, uma indígena de
cocar (na tribo dela, só os homens usam o ornamento; portanto falseia a
cultura) e a assombrosa Anielle Franco, ali instalada por ser irmã de uma
vítima da violência política. Além da inacreditável Cida Gonçalves emoldurada
no ministério das Mulheres. Por ativismo reverso, a primeira a lavar as mãos
quando o deputado Sóstenes Cavalcante propôs encarcerar mulheres que fizessem
aborto. Marina Silva e Simone Tebet, que sorte a nossa, ao contrário das
indicações identitárias, compõem a foto por competência e conhecimento. Não por
cotismo. A baixa popularidade de Lula talvez se deva à exaustão de suas
políticas assistencialistas ou ainda ao preço dos ovos. Ele paga pelo
simbolismo viscoso e sem contrapartida de eficiência e resultados. Oco,
portanto.
Graças ao empenho de Salles e das Fernandas,
Lula da Silva pôde expor um alento a uma gestão enferrujada ao cumprimentar a
equipe pelo Oscar. De novo, o populismo. Dependesse da política cultural ora em
vigor nos editais, “Ainda estou aqui” seria apenas vontade, não realidade.
Temos ali uma história longe do ideário identitário, distante do individualismo
de grupos vampirescos que marcam o engajamento — é o retrato de um coletivo sob
bombardeio. Ameaça de morte a toda a sociedade, de maneira indistinta. Pelas
leis do janjismo do terceiro mandato, o relato não seria distinguido por nenhum
financiamento público. Afinal, é uma produção dirigida por um diretor branco (e
rico), com elenco de atrizes brancas, sem contar com nenhuma cota obrigatória.
E sobre um pai de família heterossexual.
Apenas no Brasil, “Ainda estou aqui” já
angariou nos cinemas uma plateia de 5 milhões de espectadores. No exterior
também colhe bons números. O público deve subir com a premiação do Oscar. O que
é isso, companheiro? A indústria cinematográfica cumpre seu papel de gerar
empregos, conteúdo e divertimento. Há ainda uma cauda longa trazida pelo
sucesso, como a circulação das paisagens brasileiras (turismo e comércio) e dos
atributos culturais embutidos no filme — a delicada trilha sonora, capaz de
regenerar o interesse pela criativa música brasileira, distante do “sertanojo”
e do eviscerado funk de alma morfética.
No discurso de agradecimento, Salles dedicou
o prêmio aos muitos diretores brasileiros. Tem razão. De Cacá Diegues, Glauber
Rocha ou Hector Babenco, entre outros, vieram esforços e resiliência para
construir uma linguagem cinematográfica brasileira. Quase sempre sem apoios,
muitas vezes com incompreensão. O telefonema de Lula da Silva poderia traduzir
o amadurecimento de que enfim se entende a cultura não mais como instrumento
ideológico de discurso manietado pela política. Tenho dúvidas.
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