O Globo
Faltará recurso para combater o aquecimento
global e ajudar os povos em desenvolvimento
Depois do carnaval, começa o ano no Brasil.
Espero que seja próspero e feliz, mas duvido. Passamos por um momento difícil.
Algo parecido com o que li neste início de romance: “Naquela época o céu era
tão baixo que nenhum homem ousava se erguer em toda a sua estatura. No entanto
havia vida, havia desejos e festas. E, ainda que nunca se esperasse o melhor
neste mundo, esperava-se a cada dia escapar do pior”.*
Os Estados Unidos se retiraram não apenas do Acordo de Paris, mas também deixaram de apoiar a Ucrânia. Isso significa que a Europa tem dois caminhos: assumir o esforço de guerra sozinha ou receber milhões de refugiados da ocupação russa. Talvez os dois, na pior das hipóteses.
De qualquer forma, faltará recurso para
combater o aquecimento global e ajudar os povos em desenvolvimento. Como Trump
praticamente fechou a Usaid, o combate à fome e à doença pode minguar no mundo.
Em síntese: o planeta ficará mais quente e desigual. Uso esses dois adjetivos,
mas reconheço que dão apenas uma pálida impressão do sofrimento real que podem
conter: desterro em massa, desastres ambientais, epidemias. A frase que o
futuro primeiro-ministro alemão, Friedrich Merz, usou para a Europa poderia ser
estendida também a outras partes do mundo: faltam cinco minutos para a
meia-noite.
Aqui no Brasil há uma polêmica sobre as
relações da oposição com o governo Trump, principalmente as denúncias
contra Alexandre
de Moraes. De modo geral, quando se sentem estranguladas, as oposições
sempre pedem socorro fora. São quase sempre também acusadas de trair a pátria,
mas a verdade é que no aperto todos usam essa tática.
O problema do enlace entre parte da oposição
e o governo Trump é a própria natureza do autocrata laranja. Se ele conseguir,
por meio de seu poder associado às big techs, tirar a direita do sufoco e
levá-la de novo ao poder, o preço será alto. A primeira coisa que Trump dirá é
o seguinte: o que podemos ganhar com isso? Na Ucrânia, foram as riquezas
minerais, em Gaza a transformação dos escombros num resort de luxo,
naturalmente expulsando 2 milhões de pessoas que não cabem nesse delírio. O que
seria no Brasil?
Ele gosta de petróleo e certamente se
interessaria pelo pré-sal, pela exploração na Margem Equatorial. Gosta também
de expulsar gente para construir resorts de luxo. Fernando de Noronha é um
espaço ideal para esse sonho. Bolsonaro queria criar uma Cancún em Angra;
Flávio, seu filho, queria liberar a entrada de transatlânticos em Noronha. Tudo
isso é um excelente aperitivo para Trump.
Existem alguns caminhos para evitar essa
atividade externa em torno das questões políticas brasileiras. Infelizmente, o
que defendo é o menos popular e me vale às vezes alguns insultos e acusações de
cumplicidade com a direita. O ideal, no meu entender, seria uma completa
transparência sobre os atos de Alexandre de Moraes, para que possamos avaliar
internamente. Também seria ideal o conhecimento maior dos detalhes de todos os
casos julgados do 8 de Janeiro para avaliar a dosimetria das penas. Da mesma forma,
poderíamos esclarecer enigmas, como a denúncia de que se falsificou a entrada
de Filipe Martins, ou mesmo a suposição de que contas bancárias de opositores
com câncer têm sido bloqueadas.
Antes de me jogarem na lata de lixo da
História e de me classificarem como incurável reacionário, quero apenas
reafirmar que essa é a melhor forma de combate. A maneira como os vencedores
estão conduzindo o processo, no meu entender, fortalece estrategicamente a
oposição. Na verdade, travamos um diálogo de surdos com acusações recíprocas de
favorecer a vitória da direita. Posso estar errado, mas, pelo que vi e aprendi,
há uma arrogância e autossuficiência no ar, e isso é sempre péssimo sinal.
* O rochedo de Tânios — Amin Maalouf
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