Revista Será?
Foi bastante importante, em termos políticos
e também históricos, a propositura, montagem e realização do evento de
lembrança dos quarenta anos da nossa redemocratização, celebrado no Seminário “40
anos de democracia no Brasil – conquistas, dívidas e desafios”, realizado
em 15 de março no “Panteão da Pátria e da Liberdade Tancredo Neves”, em plena
Praça dos Três Poderes de Brasília. O evento, promovido pela Fundação
Astrojildo Pereira (FAP) e pelo Cidadania-23, contou com apoio do jornal Correio
Braziliense, que produziu uma exposição magnífica de fotos, documentos e
objetos significativos. As palestras e debates reuniram políticos,
intelectuais, dirigentes e militantes políticos, além do público interessado.
Pelo espírito que guiou o encontro e pelas personalidades que lá discursaram, destacando-se o ex-presidente José Sarney, tratou-se de um evento que, no essencial, homenageou o “partido da democracia” – o “partido” que conduziu a transição, produziu a Constituição de 1988 e a sustenta até os dias que correm. Não se trata de um “partido” com registro no TSE. Refiro-me aqui a uma “invenção política”, melhor dizendo, a uma “convicção política”. Para todos que lá estiveram, o sentimento era de que esse “partido da democracia” lá se expressou desde a ideia que decantou o evento até as últimas palavras pronunciadas naquele espaço. Por outro lado, a contrapelo, a celebração dos 40 anos de democracia no Brasil não foi a produção de mais uma “narrativa”. Diferentemente, o que se fez foi refletir e produzir História in atto, a saber, um “discurso” interpretativo e aberto, mas colado aos fatos históricos.
No contexto desse evento pude apresentar ao
público o meu livro A construção da democracia no Brasil, 1985-2025 –
mudanças, metamorfoses e transformismos (FAP/Annablume, 2025), cuja
intenção maior foi a de elaborar uma interpretação crítica sobre a história
política dos últimos 40 anos. Como se sabe, a democracia vem sendo acossada
pelo extremismo de direita no mundo e também no Brasil e, por isso, é preciso
defendê-la mais do que nunca. Não há melhor forma de defende-la senão por meio
de uma releitura da história da sua construção, apontando os momentos cruciais
de suas conquistas bem como os pontos essenciais em que os atores que
protagonizaram essa trajetória claudicaram no seu desenvolvimento, o que acabou
produzindo um conjunto de déficits reconhecidamente problemáticos.
Apesar disso, é preciso registrar, antes de
mais nada, que além da Constituição de 1988, os 40 anos de democracia legaram à
sociedade a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), consagrando o direito à
saúde como sendo de todos e não um privilégio. Com o Plano Real, recuperou-se o
valor da moeda e selou-se o fim da hiperinflação, iniciando-se um processo de
redução da pobreza que viria a ser aprofundado em seguida. Nessa jornada, houve
reconhecidamente uma ampliação do acesso à educação a segmentos sociais antes
excluídos. Em síntese, a democracia está sendo, para milhões de brasileiros, um
fator civilizador capaz de efetivamente melhorar a vida.
Mesmo assim, nem todos os atores políticos,
dentre os mais significativos, compartilham a mesma visão a respeito dos passos
positivos que foram dados para que pudéssemos construir a democracia nos
últimos 40 anos. É difícil obter um consenso interpretativo a respeito da
necessidade histórica desses passos bem como do seu significado e mais difícil
ainda obter consensos a respeito da validade das etapas percorridas. Por isso
somos tão divididos e incapazes, no mais das vezes, de enfrentar e vencer os
mais poderosos desafios que se apresentam.
A começar pelo processo de transição do
autoritarismo para a democracia. Nossa democracia não nasceu de uma revolução.
Nossa democracia veio à luz a partir de um processo de transição negociada,
como foi na Espanha, depois da morte de Franco, ou no Chile, depois da derrota
de Pinochet no plebiscito de 1988. São exemplos de democracias que nasceram de
transições negociadas com a institucionalidade ou com segmentos do regime
anterior. Foram necessárias operações políticas complexas para se extrair
resultados positivos dessas negociações. Por isso, algumas forças políticas, à
esquerda e à direita, não compreenderam a transição e se colocaram contra ela.
Contudo, é preciso que se afirme que a transição brasileira foi negociada, mas
também foi uma transição com um apoio popular. Como escreveu a economista Maria
Conceição Tavares, asseverando, no calor da hora, que o Brasil daqueles anos
não era mais o Porto Seguro das elites e nem a Estação Finlândia dos
revolucionários.
Como afirmou, no evento, o ex-deputado
constituinte, Miro Teixeira, “não foi fácil chegar até onde estamos”,
reconhecendo que a nossa transição foi heroica, popular e, sobretudo,
empenhou-se em isolar e conter os extremistas e os extremismos. É, portanto,
falsa a avaliação de que se tratou de uma transição conservadora. É hora de a
intelectualidade compromissada com a democracia rever essa visão enganadora e
equivocada que maltrata a história – nos dois sentidos, pode-se
enfatizar.
Hoje, mais do que uma crise da democracia, o
que se observa é uma crise do sujeito político portador do moderno, que sempre
carregou consigo a proposição que conectava liberdade, democracia e autonomia
com vistas a uma sociedade mais justa, próspera e igualitária. Na hora
presente, é preciso convocar os democratas a construírmos os desenhos que
possam informar um novo horizonte democrático, isto é, uma nova cultura
política, democrática e interdependente, que se afirme no Brasil e se expanda
pelo mundo.
Para isso, precisamos de estadistas à altura
dos desafios do nosso tempo. Infelizmente, como bem observou o jornalista José
Casado em seu artigo intitulado “O ‘pobrismo’ se tornou matéria-prima eleitoral
básica”, publicado na edição de 15 de março de 2025, Lula e o PT “parecem não
ter compreendido a dimensão da mudança ocorrida sob seus pés nos últimos
quarenta anos”, cujo processo ultrapassou “a representação política baseada no
critério de classes”. As metamorfoses dos atores democráticos que o país vivenciou
no contexto de uma globalização triunfante, na passagem do século XX para o
XXI, dentre eles Lula e o PT, ensejaram a possibilidade de um transformismo
positivo. Naquele contexto, como escrevi no livro e que Casado reproduz, “foi
possível vociferar diante de tudo, de todos e das mais difíceis circunstâncias
que o projeto político (de Lula e do PT) era, como dizia o ex-deputado petista
José Dirceu, ‘governar no Brasil’. Pois era, enfim, simplesmente isso e não
construir uma sociedade democrática, justa, solidária, mesmo que não se
conseguisse alcançar o poder. Agora, tudo indica que não será mais possível,
pelo menos na forma como se pensava”.
No andamento do terceiro mandato, continua
Casado – ainda citando literalmente o meu livro –, as identidades se
esfumaçaram “num ambiente onde partidos e seus líderes substituíram projetos de
modernização nacional pela visão tosca da política como negócio, com prioridade
às transações nem sempre transparentes, mas convergentes à garantia de poder
numa “partidocracia” patrimonialista e endinheirada”.
Em absoluta contradição com o momento inicial da construção democrática, a sensação que temos hoje é de degradação política pelo vazio de hegemonia, derivando no estabelecimento de um transformismo negativo, no qual a política significa apenas negócio. Para concluir, como anotei no final de um dos capítulos do livro, “trata-se de um transformismo que poderá bloquear a democracia e seus possíveis avanços. Seria desastroso para o país cumprir esses 40 anos de construção democrática sem reconhecer uma ameaça dessa magnitude”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário