sexta-feira, 25 de abril de 2025

Francisco, o papa que não morreu - José de Souza Martins*

Valor Econômico

Mesmo em convalescença e debilitado, o papa não é uma pessoa solitária. Ele é uma instituição

No dia 28 de fevereiro, duas semanas depois de sua internação no Hospital Gemelli, em Roma, um hospital universitário católico, o papa Francisco, com pneumonia, teve o problema de saúde agravado severamente. De tal forma que os médicos avaliaram a possibilidade de abandonar o tratamento para que ele pudesse morrer em paz.

Ao que parece, já não havia mais o que fazer para restituí-lo a um estado de saúde que lhe permitisse tocar sua complicada vida cotidiana em paz. Decidiram insistir. Finalmente, no dia 23 de março, um domingo, os médicos lhe deram alta hospitalar e ele voltou para casa, o pequeno e modesto aposento em que vivia na Casa Santa Marta, no Vaticano.

Já antes de sair do hospital, assomou à varanda, saudou a pequena multidão que na praça esperava vê-lo, sorriu para todos e acenou para uma senhora que carregava um buquê de flores amarelas. Apesar de ainda falar com dificuldade, deu indicações de que para ele a doença era um momento de exceção. Passara 28 dias hospitalizado.

No retorno, o papa saudou pessoas pelo caminho já empenhado em voltar à rotina do seu chamamento.

Teria uma sobrevida de 51 dias, muito mais do que milhões de crianças no mundo inteiro, mais do que uma sobrevida, uma nova vida, a da prontidão em face das urgências do mundo, de um mundo que se tornou o mundo da morte.

Nesses dias manifestou-se em relação a conflitos e problemas em oito diferentes países. São situações em que a pessoa nasce de novo, o que tem pleno sentido para quem vive na cultura religiosa da ressurreição e para quem foi chamado a nela personificar a esperança e a vida.

É claro que mesmo em convalescença e debilitado, o papa não é uma pessoa solitária. Ele é uma instituição. Fala pela boca dos que o auxiliam, que lhe ouvem até os silêncios, o olhar, os gestos. Que escreve pela mão dos que o ajudam. O papa é muitos. Ele não deixou de cumprir suas funções, até as mais delicadas.

Pude testemunhar isso na Sala Clementina, no Vaticano, quando fui convidado para fazer uma conferência sobre as migrações no mundo, em seminário coordenado pelo arcebispo Hamao, de Tóquio, no edifício da Aula Paulo VI, o mesmo em que os papas costumam dar audiências. Era pontífice o papa João Paulo II, já muito doente, que convidara os participantes a ali encontrarem-se com ele.

Eu não estava muito longe dele e podia ver sua dificuldade para tirar o lenço e enxugar a baba que escorria de sua boca. Perguntei a um bispo por que insistiam em envolver o papa em atividades cansativas e difíceis como aquela. Ele me explicou que o próprio papa insistia em participar de tudo.

No sábado, li na última página de “L’Osservatore Romano” um artigo de página inteira sumarizando e comentando as conferências que haviam sido feitas, inclusive a minha. Concluía com uma crítica severa do capitalismo, o que não quer dizer que Woytila fosse comunista, nem que fosse de esquerda ou de direita.

A imensa maioria das pessoas e dos críticos ignora completamente que a Igreja tem sua própria doutrina social, como Bento XVI mostrou em sua análise da alienação no livro que escreveu sobre Jesus. E Francisco manifestou claramente em seu expresso e consistente apoio ao grupo de economistas e executivos de empresas da chamada Economia de Francisco, em alusão a São Francisco de Assis, o santo dos pobres que inspirou o nome escolhido por Bergoglio.

Francisco, nestes 51 dias de sua nova vida, teve atividades notoriamente difíceis. Não morreu antes do tempo. Visitou os presos do Presídio Regina Coeli e conversou com um grupo de 70 deles.

Na Páscoa, apareceu e saudou a multidão da “loggia” da Basílica de São Pedro e em seguida, num papamóvel, apareceu na praça para saudar diretamente as pessoas, segurar-lhes a mão, beijar, abençoar e acariciar bebês. Bergoglio estava enfermo, mas não seu carisma.

Com minha esposa, estive numa de suas audiências coletivas na praça de São Pedro. Terminada a celebração religiosa, em vez de recolher-se de volta para casa, foi caminhando para a praça, parava para conversar com diferentes grupos. Ficou mais de uma hora andando por ali.

Em 2013, quando veio ao Brasil para o Congresso Mundial da Juventude, imediatamente após sua eleição, participou de uma celebração numa favela. Após a qual saiu a caminhar por uma viela e subir o morro, quando viu uma pequena igreja pentecostal, Rosa da Sarom.

O jovem pastor havia aberto o templo para que as pessoas que vieram para a celebração do papa pudessem usar os banheiros e servir-se da água fresca colocada em potes. Francisco entrou, cumprimentou o jovem pastor e juntos fizeram a oração do “Pai Nosso”. “Ele rezou por mim, e eu orei por ele”, comentou o pastor da igreja.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “Sociologia do desconhecimento - Ensaios sobre a incerteza do instante” (Editora Unesp, São Paulo, 2022)

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