O Estado de S. Paulo
Se nos limitarmos aos importantes aspectos
comerciais, deixaremos de ver grande parte das dificuldades que o presidente
dos EUA traz ao mundo
Desde que Trump anunciou suas tarifas, o
debate central é sobre as perdas do Brasil. Perdas na exportação de aço e
alumínio, em potencial.
É natural que o debate siga esse curso, o
comércio mundial está em vias de regredir e isto implica empobrecimento e
desemprego.
No entanto, não se pode reduzir o impacto da
ascensão de Trump a uma queda no comércio internacional. As perdas são de uma
dimensão maior e mais profunda.
Não contabilizamos ainda o grande impacto na política ambiental do planeta. A saída dos EUA do Acordo de Paris, firmado em 2015, tira da mesa de negociação um dos atores principais e arrisca a levar alguns coadjuvantes, como a Argentina e El Salvador.
E não se trata apenas de um retrocesso nos
esforços mundiais, mas também de uma regressão na política interna, desde a
sede por petróleo contida no slogan drill, baby, drill, a detalhes como a volta
dos canudinhos de plástico, tudo na esteira da anulação das normas e
desmontagem dos órgãos de controle.
As perdas são de toda a humanidade, mas
afetam especialmente o Brasil. Desde seu primeiro discurso no exterior, Lula
afirmou em Sharm El-Sheikh que o Brasil iria assumir sua responsabilidade no
combate às mudanças climáticas, reduzindo desmatamento e queimadas.
Nesse impulso de recuperar a importância na
política ambiental, perdida no período Bolsonaro, o Brasil decidiu abrigar a
COP-30, que será realizada em Belém.
Só em termos de investimentos para organizar
o evento, o País gastará em torno de R$ 5 bilhões.
O problema é que ele acontecerá num clima de
baixas expectativas.
Os EUA não devem participar. O nível de
emissões continua alto, assim como a perda da superfície gelada da Antártica,
segundo o National Snow Data Center. O aumento de temperatura já é de 1,5°C,
meta prevista para 2030 pelo Acordo de Paris.
Os recursos para ajudar países pobres a
mitigar os efeitos e se adaptar ao aquecimento global já não fluíam. Será
orçado em mais de US$ 1 trilhão o valor desse esforço. Como conseguir o
dinheiro sem os EUA e com a Europa voltada para reforçar sua capacidade
militar, precisamente pela resistência de Trump à Otan?
Na vida dos brasileiros, as coisas também
pioram. Milhares de imigrantes já estão expatriados e muitos deles voltam para
cá, tendo de reiniciar a vida. O turismo ficou mais áspero. Há quem tema entrar
com sua agenda telefônica nos EUA. Existe uma tendência de repressão às grandes
universidades americanas. Há cerca de 1 milhão de estudantes estrangeiros no
país, inclusive brasileiros.
Alguns que participam de movimentos
pró-Palestina foram expulsos. De todas as partes do mundo, estudantes são
enviados para os EUA por causa da qualidade do ensino e da atmosfera de livre
circulação de ideias.
Se a expressão de ideias é de certa forma
punida, qual a vantagem de se deslocar para os EUA? Censura e medo existem em
muitos países e, em certos casos, os alunos são mandados para o exterior para
se beneficiarem de uma livre troca de ideias.
Há uma outra dimensão na qual o cotidiano das
pessoas também é afetado. Duas deputadas brasileiras solicitaram visto para os
EUA. São mulheres trans e o visto no passaporte as classifica como do gênero
masculino.
Os EUA, a partir de Trump, têm uma visão
clara de reconhecer apenas o gênero masculino ou feminino. É uma decisão
presidencial com o apoio dos seus eleitores. Embora não se concorde, o direito
de definir essa questão internamente é irretocável.
No entanto, os passaportes emitidos pelo
Brasil refletem a legislação brasileira e deveriam ser respeitados tal como
foram impressos. É voluntarismo querer definir uma política de gênero para toda
a humanidade. Os processos de escolha são feitos em cada país e devem ser
respeitados.
Em síntese, se nos limitarmos aos importantes
aspectos comerciais, deixaremos de ver grande parte das dificuldades que Trump
traz ao mundo.
O enfraquecimento do universo científico
americano terá influência geral. A retração da política humanitária, como
mostrei no artigo anterior no Estadão ( O dedo de Trump no mapa da fome, 11/4,
A5), produz mortes, porque os EUA eram responsáveis por um terço da ajuda
mundial contra a fome.
Estamos apenas nos primeiros meses do segundo
governo Trump. Ele já fala em reeleição e alguns de seus apoiadores mencionam a
necessidade de ultrapassar a democracia.
Possivelmente é um projeto autoritário, que
pode ser chamado de não liberal ou qualquer outro nome.
Mark Lilla, numa entrevista a este jornal,
afirmou que a alma americana está doente. É tarefa urgente determinar os
contornos dessa “doença” e encontrar os meios de deter a marcha autoritária,
seja pela ação popular, resistência dos intelectuais ou mesmo da própria
justiça americana.
O mundo pode colaborar discretamente. Os
chineses já contestaram a visão de que são camponeses que lucram com os EUA. Os
latino-americanos certamente não aceitarão que seu espaço seja definido como
quintal dos EUA. Desde a posse de Trump, o mundo corre atrás do prejuízo.
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