O Globo
O tenente-coronel alterna amnésias e
lembranças tardias
Ao final do depoimento do tenente-coronel
Mauro Cid, o ministro Luiz Fux disse
tudo:
— Este não é o momento próprio, mas vejo com
muita reserva nove delações de um mesmo colaborador, cada hora apresentando uma
novidade.
Cid é uma flor do entorno militar de Jair
Bolsonaro. Ajudante de ordens do presidente da República, esbanjou seus 15
minutos de fama. Sempre que o ajudante de ordens do presidente ganha
notoriedade, há algo de errado com o oficial e com seu chefe. Ninguém se lembra
de que o major Tomás Paiva foi ajudante de ordens de Fernando Henrique Cardoso.
Hoje ele é o comandante do Exército.
Alguns ajudantes de João Baptista Figueiredo, Costa e Silva e João Goulart fizeram fama, e deu no que deu. O marechal Castello Branco zuniu um oficial para o canil porque ele entrou em sua sala querendo saber quem era a mulher que dormira nos aposentos do Palácio Laranjeiras na noite anterior. Castello espinafrou-o e dispensou seus serviços. Quando o oficial deixava a sala, o marechal saciou-lhe a curiosidade: a “senhora” era sua neta, uma criança. O general Eurico Dutra, quando ministro da Guerra, testava candidatos pedindo que o acompanhassem no automóvel. Antes de entrar no carro, dizia que ia para casa, em Ipanema. Ao falar com o motorista, dava um percurso absurdo. Os candidatos que o corrigiram foram dispensados, e Dutra contratou o que ficou calado.
Cid alterna lembranças tardias com amnésias
seletivas. Por causa desse zigue-zague, está preso no Rio o general Walter
Braga Netto.
Nas tramas de 2022/2023, Braga Netto foi,
comprovadamente, incitador da turma do ódio, fofoqueiro e irresponsável, mas
não está preso por isso. Num de seus últimos depoimentos, Cid acusou-o de
ter-lhe entregue, no Palácio da Alvorada, uma sacola de vinho com dinheiro para
azeitar um dispositivo dos kids pretos. Lembrou-se tardiamente e não se lembra
de quanto havia na sacola, nem em que dependência do Alvorada a carga lhe foi
entregue, muito menos em que dia. (A amnésia tem sua função, pois o palácio tem
câmeras. Bastaria um vídeo do general com uma sacola para que ele estivesse
frito.)
Registre-se que mensagens trocadas por Cid
com o tenente-coronel Rafael de Oliveira trataram de dinheiro para financiar
sabe-se lá o quê. Seria coisa de uns R$ 100 mil. Algum dinheiro rolou, porque,
documentadamente, Oliveira comprou um iPhone 12
no dia 7 de dezembro de 2022. Pagou R$ 2.500 em dinheiro vivo e registrou o
aparelho em nome de sua mulher.
A investigação da Polícia
Federal demonstrou que kids pretos monitoraram os movimentos do
ministro Alexandre
de Moraes usando codinomes e celulares com identidades frias. Só o
fetiche dos iPhones 12 explica que o tenente-coronel tenha comprado um modelo
tão caro, que certamente não seria descartado como manda a etiqueta das
quadrilhas de profissionais.
Pelo andar da carruagem, os réus da trama
golpista serão condenados porque Jair Bolsonaro, com sua retórica apocalíptica,
brandia o risco de um golpe desde os primeiros meses de seu governo. O Brasil
teve nove marechais e generais na Presidência. Mas só o ex-capitão Jair
Bolsonaro referia-se ao “meu Exército”. Esse foi o eixo de uma trama que, como
a Batalha de Itararé, não teve arremate, mas desembocou no 8 de Janeiro, com
sua “Festa da Selma”. Não teve arremate porque os generais que não falam
descartaram o golpismo de oficiais palacianos, que comandam motoristas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário