CartaCapital
Salim Mattar empunha a bandeira do
liberalismo radical, mas não vive sem a mão amiga do Estado
Desde muito jovem, Salim Mattar declara-se
liberal. O encantamento com a doutrina econômica é tamanho que ele vive a citar
o fato de ter financiado a tradução para o português de A Revolta do Atlas, da
filósofa norte-americana de origem russa Ayn Rand, uma defesa apaixonada do
laissez-faire e ataques furibundos aos conceitos de coletividade. As ideias de
Rand iluminam o tipo de liberalismo defendido, mas não praticado pelo
empresário mineiro, cuja carreira no ramo de aluguel de carros começou em 1973,
quando, em sociedade com quatro amigos, obteve um empréstimo de 50 mil
cruzeiros, comprou quatro Fuscas e abriu as portas da Localiza.
No mundo real, dos negócios, Mattar não se difere da média dos empresários bem-sucedidos do Brasil. Seu sucesso e fortuna dependeram da generosa e seletiva mão visível do Estado, contra a qual vocifera. No fim da década de 1970, em plena ditadura, as boas relações com oficiais da Aeronáutica facilitaram a obtenção de um ponto privilegiado no recém-reformado Galeão, próximo ao desembarque dos passageiros. Como os voos no aeroporto, a Localiza decolou. Em 1984, o “empreendedor” associou-se à norte-americana National Car Rental, terceira maior locadora do mundo, e conquistou a liderança do setor no Brasil. Em 1989, o nosso liberal decidiu explorar um novo mercado. Por 2,5 milhões de dólares, comprou a Belair Táxi Aéreo, que tinha entre os sócios Luiz Gonzaga Dias, piloto de Fernando Collor de Melo. No mesmo período, que coincide com a eleição do alagoano à Presidência da República, a Belair amealhou um contrato com os Correios para operar os serviços de Sedex VIP. Mais uma vez, a mão visível do Estado veio em socorro de Mattar. Curiosamente, a estatal dispensou o processo de licitação para contratar a Belair.
A constante ociosidade das aeronaves, que por
várias vezes decolavam vazias, despertou a desconfiança da fiscalização interna
dos Correios e da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência. No
relatório, os fiscais estranharam a “recente” alteração na composição social da
empresa e o esforço da Belair em manter a operação “em total sigilo”. Em
novembro daquele ano, um avião da companhia caiu perto do aeroporto da
Pampulha, em Belo Horizonte. Cinco passageiros e os tripulantes morreram no
acidente, entre eles dois integrantes da campanha presidencial de Collor. Um
mês depois, Mattar vendeu a participação na empresa.
Desde o início da carreira, as boas relações
com o Poder Público alavancaram suas empresas
Nada mudou no estilo de fazer negócios do
empresário. No discurso, um anarcocapitalista, uma versão tupiniquim de Elon
Musk. Na prática, um amigo do poder. Nos últimos anos, a Localiza recebeu mais
de 160 milhões de reais da União e cerca de 120 milhões do governo de Minas
Gerais. Apesar de o governador Romeu Zema alardear,
desde a posse, que o estado enfrenta uma crise fiscal, o valor dos contratos
com a locadora de veículos não para de crescer. Entre 2022 e 2024, os
pagamentos aumentaram 45%, de 15,7 milhões para 22,9 milhões de reais por ano.
Outra unidade da federação comandada por um bolsonarista, São Paulo, tem sido
igualmente dadivosa com a Localiza. Até 2022, os negócios da locadora com o
governo paulista não chegavam, em média, a 1 milhão de reais. Atualmente,
alcançam a cifra de 35 milhões anuais. Adendo: o liberal à brasileira foi
secretário de Desestatização de Jair Bolsonaro no mesmo período em que Tarcísio
de Freitas foi ministro. Mattar, aliás, não poupava elogios ao colega de
Esplanada. A missão do empresário era vender o patrimônio público e suas propostas
eram radicais: incluíam a Petrobras, o Banco do Brasil e a Caixa. Deixou o
cargo em agosto de 2020, sem poupar críticas à pouca disposição do então
presidente em passar o País nos cobres. Mas nada abalou sua influência. Os
Correios, um dos alvos da sanha privatista de Mattar, desembolsaram mais de 30
milhões de reais para a Localiza. A Petrobras é a maior cliente da Omni Táxi
Aéreo, da qual o mineiro é sócio. A Omni presta serviços para as plataformas
offshore da petroleira. Ao longo dos anos, a empresa de táxi aéreo recebeu
cerca de 1 bilhão de reais a partir desse acordo.
A relação com o governo Zema escancara, no
entanto, a dupla face do Adam Smith das Alterosas. No fim do primeiro mandato
do filiado do Novo, Mattar ocupou o posto de consultor da Secretaria de
Desenvolvimento Econômico, cargo que deixaria em agosto de 2023. Tornou-se, ao
lado dos sócios da Localiza, um dos principais doadores da campanha à
reeleição: 28% do total arrecadado. Sua saída da equipe de Zema deu-se um
pouco depois da aprovação, na Assembleia Legislativa, de um benefício apelidado
pela oposição de “Lei Salim Mattar”. Desde 2018, as locadoras de veículos
estavam obrigadas a pagar um valor adicional de IPVA no caso da revenda de
carros usados, mas até 2022 o valor não era descontado pelo estado. Apesar dos
problemas de caixa, Zema pediu à Justiça para interromper a cobrança “ilegal”.
O pedido foi negado. Em julho de 2023, o governador sancionou a legislação
aprovada pela base governista no Parlamento que surrupia 800 milhões de reais
da arrecadação anual em favor das companhias de locação. Segundo o Sindicato
dos Servidores da Tributação, Fiscalização e Arrecadação de Minas Gerais, em
três anos os cofres públicos perderão 4,7 bilhões.
O deputado federal Mário Heringer, do PDT,
foi um dos primeiros a denunciar os benefícios dados às locadoras e a
criatividade contábil dessas empresas. A revenda de carros, afirma, tornou-se a
parte mais lucrativa do setor. Ao comprar um veículo, as locadoras adquirem os
modelos diretamente das montadoras e conseguem um abatimento do Imposto Sobre
Serviços, reduzido de 5% para 1%. “Além disso, eles vendem o carro e dizem que
não estão vendendo, mas que estão fazendo uma substituição de bens operacionais.
Eles declaram como se fosse um computador desatualizado, que é trocado e com
isso não pagam imposto na hora da revenda e não recolhem ICMS. É um benefício
atrás do outro.” A revenda dos veículos, acrescenta Heringer, compõe a maior
parte do lucro das empresas. A Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos
Automotores informa que, no passado, o setor foi responsável pela compra de um
a cada quatro carros montados no País. Os veículos, ressalta o deputado, são
vendidos com menos de seis meses de uso e geram uma margem de ganho
considerável, tamanha a vantagem obtida, e avalia que não se pode tratar como
locadora de veículos quem de fato não passa de revendedora.
Enquanto recebia um presentão do Estado que abomina, Mattar, na passagem pelo
governo mineiro, tentou colocar em prática o fracassado plano federal de vender
a preço de banana o patrimônio público. Como no caso da passagem pela
administração Bolsonaro, talvez tenha faltado tempo, vontade e competência. O
grande troféu foi a privatização do metrô de Belo Horizonte, por 25,7 milhões
de reais. Antes do leilão, as passagens foram reajustadas em 205%, de 1,80 para
5,50 reais. Nem o aumento dos preços nem a gestão privada melhoraram os
serviços. Ao contrário, são frequentes os atrasos nos trens e problemas nas
linhas. Resultado: o número de passageiros caiu praticamente pela metade na
comparação com 2019. O metrô foi vendido ao setor privado por menos de 26 milhões
de reais, mas receberá aportes estaduais de 2,8 bilhões. Não só. O fundo
estatal, antes administrado pela Caixa Econômica Federal, foi repassado ao BTG Pactual.
Coincidência ou não, a instituição de André Esteves havia adquirido por 371
milhões, durante o mandato de Bolsonaro, aliado de Zema e parceiro na
privatização, uma carteira de crédito do Banco do Brasil avaliada em 2,9
bilhões de reais.
Como secretário de Desestatização de
Bolsonaro, Mattar conseguiu repassar à iniciativa privada a Transportadora
Associada de Gás S.A. (TAG), empresa da Petrobras. A
privatização rendeu 33 bilhões de reais. Bom negócio? Vejamos. O pesquisador do
Dieese Cloviomar Cararine lembra que, em 2017, a TAG gerava um lucro de 7
bilhões de reais por ano à petroleira. “Agora”, afirma Cararine, “a Petrobras
continua a alugar os dutos da TAG e paga, aproximadamente, 3 bilhões por ano.
Se esse valor se mantiver, em cerca de dez anos a Petrobras vai ter devolvido
aos compradores o valor que recebeu no leilão.”
A Localiza é agraciada com benefícios fiscais
generosos e contratos vantajosos
Para o diretor do Sindipetro do Rio de
Janeiro, Antony Devalle, o problema é ainda maior. “Temos de nos perguntar
também quanto custou para construir toda essa malha de dutos. O valor pago
cobre tudo que foi investido? E quanto desse montante ficou com a Petrobras,
porque ela recebeu o dinheiro, mas sua política de dividendos drena grande
parte para os investidores.” A venda da empresa só foi possível graças a uma
decisão do Supremo Tribunal Federal, que liberou o fatiamento e a
desestatização de subsidiárias de empresas estatais sem necessidade de aval
do Congresso e sem licitação, o que tem lá certo humor, pois o Judiciário é um
dos constantes alvos do empresário. Ainda assim, os embates em sua “jornada nas
entranhas do Leviatã” desanimaram Mattar, que deixou o governo do capitão pela
porta dos fundos. “Se ele (Bolsonaro) quisesse, podia privatizar todas as
empresas que não precisam de aprovação do Congresso. Depende só dele, mas falta
vontade”, desabafou.
Na época da pandemia, o “libertário” à
brasileira notabilizou-se por abraçar o negacionismo. “Quem é contra a vacina
obrigatória tem uma tendência liberal, porque o governo não tem o direito de
pedir a ele para tomar uma vacina, como o governo não tem o direito de pedir a
um cachaceiro que não beba cachaça. Fumar, beber, tomar vacina, isso é
liberdade do indivíduo”, comparou.
Procurada pela reportagem, a Localiza informou que os dados sobre a companhia estão disponíveis no site da empresa dedicado à “Relação com Investidores” e ressaltou que Mattar desligou-se da locadora no fim de 2018. A assessoria do empresário não respondeu aos pedidos de entrevista.
Publicado na edição n° 1365 de CartaCapital, em 11 de junho de 2025.
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