quarta-feira, 11 de junho de 2025

Nas tetas do Leviatã - Felipe Castanheira

CartaCapital

Salim Mattar empunha a bandeira do liberalismo radical, mas não vive sem a mão amiga do Estado

Desde muito jovem, Salim Mattar declara-se liberal. O encantamento com a doutrina econômica é tamanho que ele vive a citar o fato de ter financiado a tradução para o português de A Revolta do Atlas, da filósofa norte-americana de origem russa Ayn Rand, uma defesa apaixonada do laissez-faire e ataques furibundos aos conceitos de coletividade. As ideias de Rand iluminam o tipo de liberalismo defendido, mas não praticado pelo empresário mineiro, cuja carreira no ramo de aluguel de carros começou em 1973, quando, em sociedade com quatro amigos, obteve um empréstimo de 50 mil cruzeiros, comprou quatro Fuscas e abriu as portas da Localiza.

No mundo real, dos negócios, Mattar não se difere da média dos empresários bem-sucedidos do Brasil. Seu sucesso e fortuna dependeram da generosa e seletiva mão visível do Estado, contra a qual vocifera. No fim da década de 1970, em plena ditadura, as boas relações com oficiais da Aeronáutica facilitaram a obtenção de um ponto privilegiado no recém-reformado Galeão, próximo ao desembarque dos passageiros. Como os voos no aeroporto, a Localiza decolou. Em 1984, o “empreendedor” associou-se à norte-americana National Car Rental, terceira maior locadora do mundo, e conquistou a liderança do setor no Brasil. Em 1989, o nosso liberal decidiu explorar um novo mercado. Por 2,5 milhões de dólares, comprou a Belair Táxi Aéreo, que tinha entre os sócios Luiz Gonzaga Dias, piloto de Fernando Collor de Melo. No mesmo período, que coincide com a eleição do alagoano à Presidência da República, a Belair amealhou um contrato com os Correios para operar os serviços de Sedex VIP. Mais uma vez, a mão visível do Estado veio em socorro de Mattar. Curiosamente, a estatal dispensou o processo de licitação para contratar a Belair.

A constante ociosidade das aeronaves, que por várias vezes decolavam vazias, despertou a desconfiança da fiscalização interna dos Correios e da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência. No relatório, os fiscais estranharam a “recente” alteração na composição social da empresa e o esforço da Belair em manter a operação “em total sigilo”. Em novembro daquele ano, um avião da companhia caiu perto do aeroporto da Pampulha, em Belo Horizonte. Cinco passageiros e os tripulantes morreram no acidente, entre eles dois integrantes da campanha presidencial de Collor. Um mês depois, Mattar vendeu a participação na empresa.

Desde o início da carreira, as boas relações com o Poder Público alavancaram suas empresas

Nada mudou no estilo de fazer negócios do empresário. No discurso, um anarcocapitalista, uma versão tupiniquim de Elon Musk. Na prática, um amigo do poder. Nos últimos anos, a Localiza recebeu mais de 160 milhões de reais da União e cerca de 120 milhões do governo de Minas Gerais. Apesar de o governador Romeu Zema alardear, desde a posse, que o estado enfrenta uma crise fiscal, o valor dos contratos com a locadora de veículos não para de crescer. Entre 2022 e 2024, os pagamentos aumentaram 45%, de 15,7 milhões para 22,9 milhões de reais por ano. Outra unidade da federação comandada por um bolsonarista, São Paulo, tem sido igualmente dadivosa com a Localiza. Até 2022, os negócios da locadora com o governo paulista não chegavam, em média, a 1 milhão de reais. Atualmente, alcançam a cifra de 35 milhões anuais. Adendo: o liberal à brasileira foi secretário de Desestatização de Jair Bolsonaro no mesmo período em que Tarcísio de Freitas foi ministro. Mattar, aliás, não poupava elogios ao colega de Esplanada. A missão do empresário era vender o patrimônio público e suas propostas eram radicais: incluíam a Petrobras, o Banco do Brasil e a Caixa. Deixou o cargo em agosto de 2020, sem poupar críticas à pouca disposição do então presidente em passar o País nos cobres. Mas nada abalou sua influência. Os Correios, um dos alvos da sanha privatista de Mattar, desembolsaram mais de 30 milhões de reais para a Localiza. A Petrobras é a maior cliente da Omni Táxi Aéreo, da qual o mineiro é sócio. A Omni presta serviços para as plataformas offshore da petroleira. Ao longo dos anos, a empresa de táxi aéreo recebeu cerca de 1 bilhão de reais a partir desse acordo.

A relação com o governo Zema escancara, no entanto, a dupla face do Adam Smith das Alterosas. No fim do primeiro mandato do filiado do Novo, Mattar ocupou o posto de consultor da Secretaria de Desenvolvimento Econômico, cargo que deixaria em agosto de 2023. Tornou-se, ao lado dos sócios da Localiza, um dos principais doadores da campanha à reeleição: 28% do total arrecadado. Sua ­saída da equipe de Zema deu-se um pouco depois da aprovação, na Assembleia Legislativa, de um benefício apelidado pela oposição de “Lei Salim Mattar”. Desde 2018, as locadoras de veículos estavam obrigadas a pagar um valor adicional de IPVA no caso da revenda de carros usados, mas até 2022 o valor não era descontado pelo estado. Apesar dos problemas de caixa, Zema pediu à Justiça para interromper a cobrança “ilegal”. O pedido foi negado. Em julho de 2023, o governador sancionou a legislação aprovada pela base governista no Parlamento que surrupia 800 milhões de reais da arrecadação anual em favor das companhias de locação. Segundo o Sindicato dos Servidores da Tributação, Fiscalização e Arrecadação de Minas Gerais, em três anos os cofres públicos perderão 4,7 bilhões.

O deputado federal Mário Heringer, do PDT, foi um dos primeiros a denunciar os benefícios dados às locadoras e a criatividade contábil dessas empresas. A revenda de carros, afirma, tornou-se a parte mais lucrativa do setor. Ao comprar um veículo, as locadoras adquirem os modelos diretamente das montadoras e conseguem um abatimento do Imposto Sobre Serviços, reduzido de 5% para 1%. “Além disso, eles vendem o carro e dizem que não estão vendendo, mas que estão fazendo uma substituição de bens operacionais. Eles declaram como se fosse um computador desatualizado, que é trocado e com isso não pagam imposto na hora da revenda e não recolhem ICMS. É um benefício atrás do outro.” A revenda dos veículos, acrescenta Heringer, compõe a maior parte do lucro das empresas. A Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores informa que, no passado, o setor foi responsável pela compra de um a cada quatro carros montados no País. Os veículos, ressalta o deputado, são vendidos com menos de seis meses de uso e geram uma margem de ganho considerável, tamanha a vantagem obtida, e avalia que não se pode tratar como locadora de veículos quem de fato não passa de revendedora.

Enquanto recebia um presentão do Estado que abomina, Mattar, na passagem pelo governo mineiro, tentou colocar em prática o fracassado plano federal de vender a preço de banana o patrimônio público. Como no caso da passagem pela administração Bolsonaro, talvez tenha faltado tempo, vontade e competência. O grande troféu foi a privatização do metrô de Belo Horizonte, por 25,7 milhões de reais. Antes do leilão, as passagens foram reajustadas em 205%, de 1,80 para 5,50 reais. Nem o aumento dos preços nem a gestão privada melhoraram os serviços. Ao contrário, são frequentes os atrasos nos trens e problemas nas linhas. Resultado: o número de passageiros caiu praticamente pela metade na comparação com 2019. O metrô foi vendido ao setor privado por menos de 26 milhões de reais, mas receberá aportes estaduais de 2,8 bilhões. Não só. O fundo estatal, antes administrado pela Caixa Econômica Federal, foi repassado ao BTG ­Pactual. Coincidência ou não, a instituição de André Esteves havia adquirido por 371 milhões, durante o mandato de Bolsonaro, aliado de Zema e parceiro na privatização, uma carteira de crédito do Banco do Brasil avaliada em 2,9 bilhões de reais.

Como secretário de Desestatização de Bolsonaro, Mattar conseguiu repassar à iniciativa privada a Transportadora Associada de Gás S.A. (TAG), empresa da Petrobras. A privatização rendeu 33 bilhões de reais. Bom negócio? Vejamos. O pesquisador do Dieese Cloviomar Cararine lembra que, em 2017, a TAG gerava um lucro de 7 bilhões de reais por ano à petroleira. “Agora”, afirma Cararine, “a Petrobras continua a alugar os dutos da TAG e paga, aproximadamente, 3 bilhões por ano. Se esse valor se mantiver, em cerca de dez anos a Petrobras vai ter devolvido aos compradores o valor que recebeu no leilão.”

A Localiza é agraciada com benefícios fiscais generosos e contratos vantajosos

Para o diretor do Sindipetro do Rio de Janeiro, Antony Devalle, o problema é ainda maior. “Temos de nos perguntar também quanto custou para construir toda essa malha de dutos. O valor pago cobre tudo que foi investido? E quanto desse montante ficou com a Petrobras, porque ela recebeu o dinheiro, mas sua política de dividendos drena grande parte para os investidores.” A venda da empresa só foi possível graças a uma decisão do Supremo Tribunal Federal, que liberou o fatiamento e a desestatização de subsidiá­rias de empresas estatais sem necessidade­ de aval do Congresso e sem licitação, o que tem lá certo humor, pois o Judiciário é um dos constantes alvos do empresário. Ainda assim, os embates em sua “jornada nas entranhas do Leviatã” desanimaram Mattar, que deixou o governo do capitão pela porta dos fundos. “Se ele (Bolsonaro) quisesse, podia privatizar todas as empresas que não precisam de aprovação do Congresso. Depende só dele, mas falta vontade”, desabafou.

Na época da pandemia, o “libertário” à brasileira notabilizou-se por abraçar o negacionismo. “Quem é contra a vacina obrigatória tem uma tendência liberal, porque o governo não tem o direito de pedir a ele para tomar uma vacina, como o governo não tem o direito de pedir a um cachaceiro que não beba cachaça. Fumar, beber, tomar vacina, isso é liberdade do indivíduo”, comparou.

Procurada pela reportagem, a Localiza informou que os dados sobre a companhia estão disponíveis no site da empresa dedicado à “Relação com Investidores” e ressaltou que Mattar desligou-se da locadora no fim de 2018. A assessoria do empresário não respondeu aos pedidos de entrevista. 

Publicado na edição n° 1365 de CartaCapital, em 11 de junho de 2025.

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