Folha de S. Paulo
Presidente se vale de falso pretexto para
intervir na Califórnia e com isso viola usos e costumes da democracia americana
Destruir a democracia americana não é tarefa
simples, mas Donald Trump está
se esforçando. A decisão de enviar tropas sob comando federal para reprimir
protestos em Los Angeles,
sem pedido das autoridades locais, viola, talvez não a letra, mas certamente o
espírito de leis e tradições políticas norte-americanas.
Os Estados Unidos têm disposições para evitar que autoridades concentrem muito poder, especialmente o poder de polícia, e dele abusem. O comando sobre forças que portam armas é dividido entre vários atores, de prefeitos ao presidente. O governo federal está em princípio proibido de utilizar militares da ativa em repressão interna.
Mas, como é sempre possível imaginar
situações extraordinárias, nas quais seria necessário empregar as Forças
Armadas internamente, a mesma legislação que cria o veto prevê exceções.
E isso nos leva ao que provavelmente é a questão mais crítica do Estado de
Direito, que é a de estabelecer quando uma situação se torna excepcional e
justifica medidas extraordinárias. O problema é difícil porque não dá para
codificar a priori o que torna uma situação excepcional. A decisão é
necessariamente caso a caso.
Assim, um agente de má-fé sempre poderá
alegar que está diante de uma situação excepcional e abusar do poder. O Estado
de Direito só se realiza quando os principais atores agem de boa-fé,
respeitando não só as normas escritas, a letra da lei, mas também as não
escritas, que asseguram que seu espírito seja preservado.
Como observaram Steven
Levitsky e Daniel Ziblatt, democracias começam a morrer quando governantes
perdem o pudor em recorrer a "constitutional hardballs", isto é, a
procedimentos não expressamente proibidos, mas que forçam os limites da
legalidade, com o objetivo de ampliar o próprio poder.
Trump viu em protestos ordinários uma ameaça de insurreição e utilizou esse
pretexto para intervir na Califórnia,
rompendo uma das mais reverenciadas tradições políticas dos EUA, que é a de
respeitar o poder dos estados.
Trump não é um ator de boa-fé.
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