Folha de S. Paulo
Mandar um comediante para a cadeia por arte
degenerada não é um bom precedente democrático
Cresce hoje uma tendência preocupante: a
disposição de negar direitos civis a quem consideramos moralmente inaceitável.
O curioso é que esse impulso autoritário não é incompatível com crenças
democráticas.
Como mostram décadas de pesquisa —inclusive o
clássico estudo de Samuel Stouffer, "Communism, Conformity, and Civil
Liberties"—, muitos que efetivamente valorizam a democracia não veem
problema algum em negar a liberdade artística ou de expressão de indivíduos ou
grupos percebidos —segundo os parâmetros de quem julga— como depravados,
ameaçadores ou nocivos.
Ora, essa é justamente a definição mais consensual de intolerância política: a disposição de suprimir direitos civis e liberdades básicas a grupos e indivíduos cujas ideias e atitudes são vistas como ofensivas ou moralmente inaceitáveis. A intolerância se manifesta quando o compromisso com o pluralismo democrático, que exige o reconhecimento da legitimidade dos adversários, cede lugar à repulsa moral. E ela é situacional: os indivíduos tendem a ser tolerantes com grupos e pessoas que não desafiam seus valores centrais e intolerantes com os que os confrontam.
Esse impulso costuma se apoiar em disposições
autoritárias, entendidas como inclinações psicológicas que incluem
agressividade punitiva contra desviantes e desejo de ordem social —já mapeadas
pelo livro de Adorno e colegas, "A Personalidade Autoritária", de
1950. O autoritarismo serve de base emocional e moral para a intolerância.
Ambos os traços aparecem tanto na esquerda
quanto na direita. Progressistas aceitam mui facilmente a supressão de direitos
civis de conservadores, religiosos tradicionais, homofóbicos ou misóginos;
conservadores, por sua vez, miram comunistas, feministas radicais,
movimentos LGBTQIA+ e
vanguardas. A lista dos que não deveriam gozar dos mesmos direitos e garantias
assegurados aos demais pode variar conforme a sensibilidade do grupo, da época
e da conjuntura política —mas sempre há uma lista. O constante é que o apoio à
liberdade de expressão é condicional: ele se mantém apenas enquanto não se
trata de "párias morais".
Um dos achados mais perturbadores desses
estudos é que, quando há suficiente consenso moral sobre a repugnância de um
grupo ou indivíduo, cresce entre cidadãos comuns a aceitação de restrições de
direitos e até de punições extremas. Todos viramos, como diz Lygia Maria,
aldeões com tochas —dispostos a aplicar aos outros sanções que, em outros
contextos e diante de outros grupos, consideraríamos inaceitáveis.
A intolerância, por isso mesmo, sempre é
justificada moralmente. Os estudos revelam que o apelo à proteção de valores
fundamentais ("proteger minorias ou crianças", "defender a
nação", "evitar discurso de ódio") serve frequentemente como
racionalização do excepcionalismo.
Essa lógica ajuda a entender o caso recente
do comediante Leo Lins. Conhecido pelo humor negro
—que atinge deficientes, negros, gordos, mulheres e LGBTQIA+—, Lins construiu
sua persona pública como desafiante declarado da hegemonia progressista. Em
maio, foi condenado em primeira instância a oito anos de prisão e multas
milionárias. O crime: fazer piadas que foram interpretadas como
"racismo" e "discurso de ódio".
Não se trata aqui de defender o deplorável
humor de Lins. Trata-se de refletir sobre o precedente. O juiz que o condena
acredita proteger minorias vulneráveis do preconceito veiculado pelas piadas do
comediante —às quais se expõem, em espetáculos privados, apenas adultos
conscientes do que Lins oferece e que certamente compartilham das premissas do
seu humor. Adultos que não mudarão de posição na direção virtuosa apenas porque
um humorista foi condenado por debochar de minorias e rir de vulneráveis.
O mais grave é que, ao fazer isso, o
magistrado ignora um princípio elementar da vida democrática: a liberdade de
expressão não precisaria de proteção constitucional se servisse apenas a
opiniões que não nos ofendem. O verdadeiro teste da tolerância é garantir
direitos àqueles que desprezamos.
Além disso, como as democracias são campos em disputa, não há garantia de que o próximo alvo não seja o censor de hoje, uma vez que o moralismo intolerante pode trocar de mãos com facilidade. Há alguns anos, estávamos defendendo quadros da acusação de zoofilia, artistas da acusação de pedofilia, o governo da acusação de incentivo à homossexualidade e de corrupção de menores. Eis que hoje precisamos defender a ideia de que mandar para a cadeia um comediante por sua "arte degenerada" não é um bom precedente democrático.
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