Valor Econômico
Risco de ruptura existiu com bloqueio de
estradas logo depois da eleição
O dia 1º de novembro de 2022 amanheceu em
meio a muita tensão. Insatisfeitos com o resultado do segundo turno realizado
dias antes, caminhoneiros bolsonaristas bloqueavam pontos estratégicos da malha
rodoviária nacional. Em poucas horas, as obstruções passaram a atingir 25
unidades da federação e estavam saindo do controle.
Documentos com conteúdo golpista circulavam entre os aliados mais próximos de Jair Bolsonaro (PL), então presidente da República e comandante em chefe das Forças Armadas. Era intensa a atividade em grupos de aplicativos de mensagens compostos por auxiliares de escalões inferiores do Palácio do Planalto e da Esplanada dos Ministérios, nos quais a defesa de um golpe era feita com assombrosa naturalidade. Ainda não havia, no entanto, palavra alguma de Bolsonaro no sentido de reconhecer a derrota nas urnas para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Diante de uma crise já instalada e seu
potencial de agravar-se exponencialmente com efeitos políticos e econômicos, um
emissário de Bolsonaro procurou logo cedo integrantes da ala política do
governo pedindo para que fossem ao Palácio da Alvorada, residência oficial da
Presidência. Como resposta, ouviu que do ponto de vista político o mandatário
jamais seria abandonado. Mas que não esperasse respaldo para uma investida com
vistas a uma ruptura institucional.
Pouco tempo depois, já no Palácio da
Alvorada, essas lideranças políticas apelaram diretamente ao então presidente
para que ele reconhecesse o resultado das urnas, sinalizasse que a transição
com representantes da próxima administração teria início imediato e, por fim,
que se encerrassem os bloqueios dos caminhoneiros. Resposta negativa.
Estava viva na memória de todos os presentes
a greve dos caminhoneiros realizada durante o governo Temer, em maio de 2018,
quando o país ficou à beira do colapso. Durante dez dias, o movimento causou
uma crise de desabastecimento no país, ao suspender o fornecimento de
combustíveis, alimentos e insumos médicos. Argumentou-se que havia risco real
de desabastecimento dessa vez também. Resposta negativa novamente.
Segundo quem participou dessas conversas,
Bolsonaro só foi demovido quando lhe foi dito que as barreiras poderiam impedir
o fornecimento de oxigênio a hospitais, repetindo as cenas de terror vividas no
Amazonas durante a pandemia. Estimativas citadas em 2024 pelo Ministério
Público Federal e a Defensoria Pública estadual apontam que cerca de 60 pessoas
morreram por asfixia apenas no dia 14 de janeiro de 2021.
Ficou decidido que o presidente faria um
pronunciamento para tratar da paralisação dos caminhoneiros. Ainda assim,
prosseguia o impasse, entre a ala política e o grupo mais radical que orbitava
em torno do hoje ex-presidente, sobre a inclusão ou não da expressão
“transição” na fala que seria feita a seguir. Até que Bolsonaro optou por
realizar uma breve votação entre os presentes: com a vitória da proposta de que
o então presidente deveria finalmente falar em público sobre o início do
processo de passagem do cargo, um discurso com esse teor começou a ser
redigido.
Nesse momento, contudo, os relatos de pessoas
que estavam presentes registram que o então presidente retirou-se para atender
a um telefonema. E ao retornar, recuou. Disse que não falaria mais pessoalmente
sobre o processo de transição. Porém, concordou que um de seus auxiliares o
fizesse. O ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira, ficou com a missão.
Seu pronunciamento teve 211 palavras. Em uma
fala ambígua, criticou o processo eleitoral e deu legitimidade às
manifestações, que até então eram pacíficas. Por outro lado, ponderou que os
métodos de seus apoiadores não deveriam cercear o direito de ir e vir.
Após Bolsonaro concluir seu breve
pronunciamento e retirar-se, ficaram em frente à imprensa Ciro Nogueira e
outros ministros civis. Conforme combinado, ele ocupou o púlpito e assegurou
que os ritos de transição previstos em lei seriam cumpridos.
Bolsonaro frustrou seus poucos aliados que
ainda podiam esperar dele algum respeito à institucionalidade. Por outro lado,
gerou alívio entre esses mesmos interlocutores da ala política, os quais temiam
que a paralisação dos caminhoneiros fosse usada como justificativa por aqueles
que defendiam a decretação de uma missão de Garantia da Lei e da Ordem (GLO).
Esta seria a senha para que se tentasse instrumentalizar as Forças Armadas com
o objetivo de impedir a posse de Lula.
Nessa terça-feira (10), Bolsonaro mencionou
passagens desse episódio para tentar convencer a Primeira Turma do Supremo
Tribunal Federal (STF) de que, se quisesse dar um golpe, não teria defendido o
fim dos bloqueios nas rodovias. Quanto à possibilidade de assinar uma GLO
naqueles dias, revelou em seu depoimento que a medida de fato foi discutida com
os comandantes militares.
Esse capítulo da trama golpista foi muito
mais tenso do que a versão apresentada pelo ex-presidente. Pode ser considerado
um momento em que por pouco não houve a ruptura institucional, que quase foi
alcançada, também, no dia 8 de janeiro de 2023.
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