quinta-feira, 5 de março de 2009

A natureza do escorpião

Dora Kramer
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO


O mandato-tampão do senador Garibaldi Alves pode não ter sido inesquecível nem redentor das mazelas do Senado. Mas, durante sua passagem pela presidência, a Casa viveu um período de razoável decência e harmonia interna.

Insuficiente para debelar as imposturas, mas nada parecido com a conflagração do mandato anterior de José Sarney - cujo empenho em restringir a ação da minoria para agradar ao gestor palaciano da maioria fez a oposição buscar abrigo no Judiciário - ou com a degradação moral da segunda administração Renan Calheiros.

Poderia ser o início da recuperação. No momento da troca de comando, havia duas possibilidades: experimentar a renovação proposta pelo senador Tião Viana ou renovar contrato com o retrocesso e reconduzir José Sarney sob o patrocínio de Calheiros.

Entre o certo e o duvidoso, a maioria dos senadores escolheu oferecer as veias à inoculação de veneno conhecido. Mais potente na retomada, curtido no caldeirão da vingança.

Não transcorreram dois meses da eleição e já se vislumbra o tamanho do estrago: Senado parado, disputas das presidências de comissões permanentes mediante violação de critérios regimentais para atender aos favores de campanha, explosão de atritos até então latentes na base governista, retomada da política de feudos.

Na presidência, um homem evidentemente acuado, hesitante em assumir a liderança inerente ao cargo e enfrentar o risco de arbitrar e desagradar.

Quadro muito diferente daquele pintado pela expectativa de que Sarney seria o homem certo na hora certa, para conduzir o Congresso na crise e resgatar o Parlamento das profundezas do poço com autoridade e capacidade de pacificar.

Não por acaso nem por ausência de discernimento na organização dos assuntos por ordem de importância, a comissão de acompanhamento da crise econômica - considerada por Sarney o evento mais significativo dos últimos tempos - não ganhou destaque no noticiário.

Na terça-feira Sarney teceu loas à comissão minutos antes de deixar o plenário a tempo de evitar o discurso do senador Jarbas Vasconcelos conclamando o Poder Legislativo à salvação da própria pele num combate às práticas espúrias na política.

Aquele sim era um acontecimento relevante. Na atual conjuntura de escândalos que se avolumam, muito mais que o trabalho de uma comissão de notáveis para discutir soluções que estão a milhares de léguas de distância de seu alcance.

Isso sem ignorar o mérito desse tipo de debate no Parlamento. Ao contrário. Muito melhor seria ver o Congresso às voltas com essas e outras questões de interesse coletivo, soberano, ciente de sua tarefa de dar voz e materialidade às demandas da população.

Desconfortável para quem elege representantes é vê-los no elenco de espetáculos degradantes.

O que não se pode é tentar fazer disso um artifício para abafar as evidências, justificar o injustificável, adiar o inadiável. Discuta-se a crise econômica, mas não se vire as costas ao malefício que a perda acelerada de valores causa ao País, aos cidadãos e às instituições.

Em família

Renan Calheiros foi líder do governo Fernando Collor, de quem se afastou por divergências com Paulo César Farias, o tesoureiro da campanha cujo principal alvo era o "batedor de carteira da História", então presidente da República, José Sarney, hoje presidente do Senado que devolveu a Calheiros poder para fazer de Collor presidente da Comissão de Infraestrutura da Casa.

Posto obtido mediante a substituição de eleitores da senadora petista Ideli Salvatti por senadores de cabresto, o que dá ao PT a medida da lealdade pemedebista ao parceiro de aliança e presumido companheiro de chapa em 2010.

Fidelidade esta explicitada na intervenção do senador Almeida Lima sobre o aparte solidário de Aloizio Mercadante ao discurso anticorrupção de Jarbas Vasconcelos na noite de terça-feira. "Antes tarde do que nunca", ironizou.

Na trave

O apoio do PSDB e do PDT aos governadores Cássio Cunha Lima e Jackson Lago, cassados pela Justiça Eleitoral por abuso do poder econômico, não foge ao hábito dos partidos de defenderem correligionários flagrados em delito.

É um direito que os assiste. Agora, se de vez em quando se solidarizassem com as vozes que se levantam contra os delitos certamente dariam uma contribuição mais efetiva que pragmática adesão à causa do senador Jarbas Vasconcelos na terça-feira à noite, depois de o deixarem falando sozinho por duas semanas.

Foi preciso os funcionários de Furnas protestarem publicamente contra o assédio do PMDB sobre o fundo de pensão da empresa, o senador ser afastado da CCJ em retaliação e repetir da tribuna que a corrupção contamina a política e adoece a democracia, para seus pares celebrarem suas declarações à Veja.

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