A presidente Dilma esteve em Cuba e não quis fazer nenhum gesto em defesa dos direitos humanos na ilha. Se fosse orientado, o Itamaraty teria encontrado a forma de o governo brasileiro expressar pelo menos sua preocupação com o assunto – não lhe faltaria imaginação diplomática. Note-se que pouco antes da visita morrera um prisioneiro político cubano que fazia greve de fome. Infelizmente, e apesar das promessas de mudança, em matéria de direitos humanos o atual governo manteve-se na linha do anterior, de aliança fraterna com ditaduras e ditadores.
Quem foi perseguido político sabe o valor dos gestos de solidariedade internacional para frear o arbítrio. Fui contemporâneo, quando exilado nos Estados Unidos, de um gesto exemplar, feito na segunda metade dos anos setenta pelo presidente Jimmy Carter. Já na sua campanha eleitoral, em 1976, ele anunciara mudanças na política norte-americana nessa área; depois de eleito, cumpriu a palavra. Por isso mesmo, em 2008, recebi-o na sede do governo de São Paulo e condecorei-o em nome do Estado e da democracia. Destaco, em seguida, trechos do discurso que fiz na ocasião, que relatam os episódios da ação de Carter em relação ao Brasil.
Senhor Presidente Carter, V. Ex.ª serviu como Chefe do Executivo norte-americano quando ainda se sentiam as consequências de grandes divisões da sociedade americana, resultantes da guerra do Vietnã, e do período altamente conflituoso da administração Nixon, sem falar do impacto da primeira crise do petróleo.
Para mim, esses eram tempos de exílio. Eu morava nos Estados Unidos e era membro-visitante do Instituto de Estudos Avançados de Princeton, após ter completado o doutorado em Economia na Universidade Cornell. Em 1964, por ocasião do golpe que instaurou o regime militar no Brasil, eu era presidente da União Nacional dos Estudantes, fui perseguido, condenado, e tive de deixar o Brasil.
Em setembro de 1973 eu morava no Chile, exilado, quando houve o golpe que levou o general Augusto Pinochet ao poder. Lá, fui preso, e em 1974 consegui deixar esse país na condição de exilado. Tornei-me, assim, um exilado “ao quadrado”. Vivi os duros momentos iniciais de duas ditaduras e fui alvo da repressão de ambas. Do Chile, fui para os Estados Unidos com minha família, onde assisti a queda do presidente Nixon e a disputa eleitoral de 1976.
Por isso, fiquei particularmente impressionado e mesmo emocionado quando, nos debates da campanha presidencial, tendo como oponente o então Presidente Gerald Ford, ouvi V. Ex.ª condenar o apoio dos Estados Unidos a ambas as ditaduras, a brasileira e a chilena. Apoio que começara na própria articulação dos golpes de Estado que as instauraram.
Após a sua posse, tomei conhecimento de um pronunciamento seu que viria a tornar-se famoso, na Universidade Notre Dame. Nele se estabeleceu que os direitos humanos seriam o norte da nova política externa. E não foram apenas palavras, mas um sério compromisso de empregar os recursos de poder dos Estados Unidos – tanto em matéria de soft power quanto de hard power – para apoiar a democracia e os direitos humanos em todo o globo.
Se as relações entre Estados soberanos foram, desde sempre, o reino do pragmatismo, mais ainda o eram na época de sua presidência, em plena Guerra Fria. As denúncias de abusos, e a defesa de princípios, eram sempre muito eloquentes quando se referiam a fatos ocorridos no campo inimigo. Os abusos praticados por aliados eram ignorados ou até negados.
Mas a corajosa opção do presidente Carter teve um impacto profundo e duradouro na evolução das relações internacionais.
Sob a justificativa de combater o comunismo ou o terrorismo (os dois eram sinônimos então), as ditaduras da América Latina, aliadas dos Estados Unidos, praticaram a tortura e mesmo o assassinato de muitos dos seus opositores – às vezes em massa, como nos casos argentino e chileno. Direitos fundamentais da pessoa foram abolidos e liberdades democráticas desrespeitadas.
Talvez seja difícil para alguém que não viveu este período de nossa história avaliar o impacto entre nós da decisão do governo dos Estados Unidos da época de promover o respeito aos direitos fundamentais dos indivíduos.
As ditaduras se sentiram traídas: a exigência de um relatório sobre a situação dos direitos humanos no Brasil foi um dos motivos, se não o principal, do rompimento do Acordo Militar Brasil-EUA (1952) pelo governo brasileiro em 1977.
Sociedades carentes de liberdade viram surgir um inesperado aliado, coerente e dedicado. Ao visitar nosso país em 1978, o senhor insistiu em se encontrar com D. Paulo Evaristo Arns e o reverendo James Wright, que haviam preparado um detalhado relatório sobre a tortura no Brasil. Deste relato inicial nasceu a obra definitiva Brasil: Nunca Mais.
Lembro também da visita de Rosallyn Carter ao Brasil, em 1977, com o objetivo de reiterar as políticas do seu marido em apoio à democracia e aos direitos humanos. No Brasil, apesar dos estreitos limites impostos às suas atividades públicas, Rosallyn insistiu em encontrar lideranças não governamentais para discutir direitos humanos e direitos políticos. Escoltada por uma guarda militar intimidadora, encontrou-se em Recife, sozinha, com o cardeal arcebispo católico Dom Helder Câmara, figura legendária na oposição à ditadura brasileira.
Por uma feliz coincidência, a professora Ruth Cardoso, antropóloga e ativista da condição feminina, esteve também entre as pessoas convidadas para encontrar Rosallyn.
Pode parecer uma ousadia a concessão da Medalha do Ipiranga para alguém que, como o Presidente Jimmy Carter, recebeu, entre outras honrarias, o Premio Nobel da Paz. Acredito, porém, que nós, brasileiros, nunca homenageamos condignamente um homem que teve uma profunda e benéfica influência na história recente do país e da nossa região.
V. Ex.ª está sendo agraciado por mim, na condição de Governador do Estado de São Paulo. E não só como governador, mas também como um cidadão brasileiro que encontrou, nos Estados Unidos, a acolhida humana e a formação acadêmica e intelectual nos difíceis anos de exílio.
José Serra, ex-prefeito e ex-governador de S. Paulo
FONTE: BLOG DO SERRA
2 comentários:
Gilvan: Ainda que não concorde comigo, gostaria de um retorno sobre o texto abaixo p/ que a minha indignação se aquiete. Minha intenção é a melhor...se há erros de julgamento, gostaria que me alertasse.
mgalbuquerq@yahoo.com.br
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Essa nossa visita a Cuba (infelizmente tenho que admitir que, por representatividade, foi minha tb), deu um nó na minha cabeça. Não que o ocorrido não fosse previsível, mas levou-me a rever questões antes mal definidas. Duas opções minhas foram definitivamente naturais : pelo vegetarianismo e ao repúdio à ditadura. Dominâncias de 64...É inegável que o povo iludido e os militares estabeleceram uma contestável relação de “amor”. A demanda pela tutela militar existiu, embora com fortalecimento sorrateiro. Estaria muito mal comparada à do civilizado mundo europeu quando lhe interessou a perda do poder econômico judaico, ainda que às custas de atrocidades. Mas hoje é domingo, dia de permissões, e me permito a tal.
Era pequena, mas me recordo dos dias que antecederam a renúncia de João Goulart. As freiras do meu colégio e as mães brasileiras faziam corrente de orações, terços nas mãos, exorcizando o comunismo que, segundo as dominâncias conservadoras, renderia o Brasil. E, num ato de profundo respeito ao povo, o que elimina as afirmações de que Jango (assassinado em 1976) seria tão totalitarista assim, o presidente renunciou. Há os que dizem que os militares se aproveitaram da passividade do brasileiro, estendendo o que seria apenas uma necessária intervenção, à esfera do seu gozo. E rejeitam a violação dos direitos humanos aqui ocorrida. Menos mal. Os mais velhos (no sentido amplo de bagagem) eram tão reativos à militância que fomos consumidos por outras mentiras. Primeira: a de que todas as reações seriam de cunho comunista. Isso não era absolutamente verdade, pois até uma criança como eu, percebia que havia "mutretagem" no ar e não se deixava levar. Coibia-se assim a valorização inata da liberdade, com o auxílio de cassetetes e arrogantes "carteiradas" na rua. Segunda: a de que nem todas as ideologias mereceriam respeito, ainda que, na prática, não coibissem a liberdade individual. Terceira: (essa, apropriada pela juventude da época, que se achava rebelde apenas porque escutava, peito inflado, as músicas do Chico) seria de que todos os militantes perseguiam uma ideologia internamente bem construída.
Por incrível que pareça, a minha ficha só caiu agora. Posso estar enganada, mas começo a perceber que a Dilma era só uma operacional na engrenagem. Válidos o seu ímpeto corajoso e o seu bom convívio c/ a adrenalina. Mas sinto falta, no momento, do suporte político-filosófico de uma Ruth Cardoso, por exemplo. A nossa visita a Cuba teria se dado em bases menos fantasiosas, como se a resistência antiimperialista dos anos 60 ainda estivesse em voga e militantes ainda necessitassem do colo e abrigo cubano. Fiquei revoltada com o cinismo perante o anseio de liberdade da Yoani. Hegel afirmava que, sem filosofia, não há história. Chega de milagres econômicos brasileiros. Chega de perseguir aplausos do mundo capitalista. O discurso de Dilma está avançando no ufanismo, próprio das imposições. D. Ruth...saudades, viu??
http://globotv.globo.com/globo-news/jornal-globo-news/v/professor-de-relacoes-internacionais-comenta-visita-de-dilma-a-cuba/1792328
Excelente entrevista c/ o Professor e economista Maurício Santoro.Os Estados Unidos como terceiro maior exportador p/Cuba (embargo?) Georgina Albuquerque
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