Obama destacou muitas qualidades pessoais de Mandiba, como o povo chamava Mandela, mas uma delas é especial na política: a capacidade de perdoar os desafetos
Foi emocionante o funeral de Nelson Mandela, ontem, em Joanesburgo, na África do Sul. Ele, como disse a presidente Dilma Rousseff, foi talvez a maior personalidade do século 20, na qual pontificaram grandes estadistas e líderes, nenhum dos quais, porém, com trajetória política tão dramática e soma de atributos de natureza pessoal com a universalidade do sul-africano. “Nelson Mandela conduziu com paixão e inteligência um dos maiores processos de emancipação do ser humano da história contemporânea: o fim do apartheid na África do Sul. O combate de Mandela e do povo sul-africano se transformou em um paradigma para todos os povos que lutam pela justiça, pela liberdade e pela igualdade”, disse Dilma.
Entre os 90 chefes de estado presentes à cerimônia, ocuparam lugar de destaque os presidentes de Cuba, Raúl Castro; da Índia, Pranab Mukherjee; da Namíbia, Hifikepunye Pohamba; e o vice-presidente da China, Li Yuanchao. Mas a grande estrela da festa foi o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, que fez um pronunciamento antológico e, desde a entrada no Estádio Soccer City, com capacidade para 80 mil pessoas, foi sempre o mais aplaudido entre os presentes, enquanto o atual presidente sul-africano, Jacob Zuma, foi vaiado.
Obama destacou muitas qualidades pessoais de Mandiba, como o povo chamava Mandela, mas uma delas é especial na política: a capacidade de perdoar os desafetos, depois de vencidos, como fez não só com o primeiro-ministro Frederik Willem de Klerk, com quem dividiu o prêmio Nobel da Paz, depois de negociar uma transição pacífica, mas, também, com seu carcereiro, de quem se tornou amigo. A lição de Mandela é de que não se deve “fulanizar” a política, mas lutar por ideias e agir contra as instituições e práticas injustas, como era o apartheid. Talvez tenha sido essa mesma inspiração a que levou Obama a cumprimentar de forma simpática e até efusiva o presidente de Cuba, Raúl Castro, sem embargo das críticas que fez aos regimes autoritários e seus tiranos. Um sinal de que alguma coisa nova pode surgir daí e da política externa norte-americana, cujo eixo é a luta antiterrorista herdada de George Bush, e que cada vez mais dá sinais de que se esgotou.
Todo esse arrazoado, porém, tem por objetivo ressaltar o gesto da presidente Dilma Rousseff ao convidar os ex-presidentes da República José Sarney (PMDB), Fernando Collor de Mello (PTB), Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e Luíz Inácio Lula da Silva para integrar a delegação oficial brasileira que foi ao enterro, à moda norte-americana, cuja delegação também era integrada pelos ex-presidentes Jimmy Carter, George Bush e Bill Clinton. Foi um ato — o segundo que faz em seu mandato — de que não pretende “fulanizar” a política de governo. Isso é importante diante da aproximação de uma campanha eleitoral que dá sinais de que será dura e suja. Ulysses Guimarães (PMDB), o patrono de nossa Constituição Cidadã, com outras palavras, dizia que esse tipo de postura é um equívoco. A situação política muda e, muitas vezes, o adversário de ontem é o grande aliado de hoje.
A própria delegação brasileira é um exemplo disso. Talvez ninguém tenha esculachado mais o ex-presidente José Sarney do que Collor de Mello, que acabou apeado do poder por uma campanha de impeachment liderada por seu desafeto na campanha de 1989, o ex-presidente Luiz Inácio da Silva. Este, antes, durante e depois de seu governo, nunca perdeu uma oportunidade de espicaçar seu antecessor, Fernando Henrique Cardoso, que também não deu vida mole para José Sarney quanto ele ocupava a Presidência, a ponto de dizer que a crise viajava com ele. Agora, os quatro dividiram a mesma cabine do avião presidencial, como notáveis representantes do Brasil no funeral de Mandela.
A “fulanização” da política no Brasil é uma tradição pré-republicana. Foi característica de D. Pedro I logo após a proclamação da Independência, principalmente durante a Constituinte de 1923, que acabou dissolvida. Com seu amigo Francisco Gomes da Silva, o Chalaça, infernizava a vida dos desafetos com publicações anônimas e caluniosas. Foi também uma característica das lutas políticas da República Velha. Nosso regime presidencialista, de certa forma, até hoje estimula que assim o seja. Mas é uma forma atrasada e retrógrada de fazer política. Por isso, o mesmo povo despreza os políticos que usam de baixaria nas disputas e depois se confraternizam como amigos de infância. Consideram esse gesto de civilidade — que em si não é o problema —, falta de vergonha na cara. Como isso é inevitável na política, quando mudam conjunturas e prioridades, o melhor, mesmo, é não “fulanizar”.
Fonte: Correio Braziliense
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