- O Estado de S. Paulo
Estamos presenciando a recaída de nosso pretenso partido hegemônico, o PT, na radicalização. Não resta dúvida de que Lula está radicalizando, o PT também está e Dilma está aos poucos cedendo às pressões para radicalizar. O que resta é a questão de saber por quê. Dúvida pouco relevante nas eleições de 1982, 1989, 1994 e 1998, quando Lula foi derrotado por causa do caráter radical de seu programa.
Já a vitória de Lula em 2002 deveu-se a fatores que amainaram as aparências mais radicais da campanha. Primeiro foi a substituição de seu programa por uma "carta de princípios" que comprometia um futuro governo petista com o Estado Democrático de Direito e, sobretudo, com a manutenção da política econômica até então vigente.
Segundo, a adoção de um estilo de comunicação e um novo discurso acomodatício, de uma personalidade inteiramente nova, com expressão corporal e vestuário "executivo" - tudo diametralmente oposto ao estilo raivoso e confrontacional do passado. E, terceiro, a aliança "pragmática" com seus adversários ideológicos mais opostos, inclusive ícones do regime autoritário e donos dos currais eleitorais mais atrasados do País.
Ninguém precisou se enganar. A esquerda petista não precisava ser enganada porque entendeu o compromisso como sendo apenas uma diversão tática para chegar ao poder e, em seguida, assumir a hegemonia e impor seu programa aos aliados incômodos, às elites dominantes e às classes médias alienadas. Após as eleições de 2002, todas as bandeiras do partido continuaram vigentes, com parte da linguagem mais radical substituída por eufemismos.
As chamadas raposas e os "picaretas" também não se enganaram, porque confiavam em sua lendária capacidade para manipular o jogo parlamentar e os corações e mentes da classe dirigente em proveito próprio. Com isso, esperavam lucrar duplamente, primeiro, barrando as iniciativas inconvenientes do governo, seja as mais audaciosas agressões às instituições vigentes, seja as ameaças aos interesses vitais da maioria ou de setores relevantes da classe política. Em segundo lugar, tornando-se livres para chafurdar sem pejo no lodaçal da República, convenientemente rebatizado de "governança".
Seria a quintessência da aliança espúria, o perfeito win-win game, o jogo em que todos ganham mais do que perdem, com exceção do povo. Afinal, o PT teve de ceder quase todos os anéis, mas ficaram os dedos com os quais por 12 longos anos tem-se aferrado ao poder com todas as suas pompas e todas as suas glórias. E nem todos os anéis se foram. Eles retornam intermitentemente em pronunciamentos oficiais e oficiosos do PT e de suas organizações paragovernamentais.
Percebe-se hoje a insatisfação generalizada que corrói até a medula o pacto pelo imobilismo e a mediocridade que mantém a "governabilidade" da aliança lulo-dilmista. E pela razão muito simples de que talvez, mais ainda do que o povo, os stakeholders da aliança são precisamente os mais insatisfeitos.
O PT está insatisfeito porque, ao fim de 12 anos de tão ardentemente esperada hegemonia, muito pouco ou quase nada se concretizou dos esperados atributos de um partido hegemônico. O monopólio da "direção intelectual e moral" da sociedade, o controle da luta ideológica por meio da submissão da imprensa, a subordinação dos demais poderes e a conquista de prerrogativas supraconstitucionais para o partido vêm sendo, a cada revés, adiados para os "amanhãs que cantam".
Do outro lado, os "picaretas" e as raposas também estão insatisfeitos, porque receberam os anéis, mas não podem ostentá-los nem foram convidados ao baile. Recolhem do butim as migalhas, mas se sentem permanentemente ameaçados - e traídos - pela ganância hegemônica do PT. Sua participação no poder serve para limitar as perdas, mas não os exime de ceder às chantagens e compartilhar a culpa pelos fracassos do governo e a impopularidade que daí resulta.
A popularidade vinha mantendo essa aliança dos insatisfeitos. Mas a insatisfação do PT só era contida pela certeza da reeleição. Sem ela, os amanhãs que cantam não seriam apenas adiados para o próximo quadriênio, mas sine die.
A insatisfação da classe política, do empresariado, das classes dirigentes em geral, já não é contida pela falta de alternativas atribuída à inevitabilidade do continuísmo. A alternativa agora é possível: por que, então, as classes dirigentes optariam pelo suicídio?
Se a radicalização e o clima polarizado que ela implica levaram no passado à derrota eleitoral, e se a alternativa de uma coalizão dos insatisfeitos está fazendo água, então essa radicalização não seria para evitar a derrota, mas para evitar a ameaça da alternância no poder. A radicalização do PT não seria um erro tático, mas uma estratégia deliberada para conquistar sua almejada hegemonia fora das urnas e apesar delas.
Como? Criando um clima conflagrado que contrapõe a legitimidade das ruas à legalidade das instituições; impondo o controle "social" à pura e simples liberdade de pensamento e de expressão; concitando a convocação de assembleias constituintes oportunistas para submeter a Carta a maiorias de ocasião; dissolvendo no dia a dia o direito à propriedade individual para satisfazer os interesses dos militantes organizados; invocando a liberdade de manifestação como desculpa para agredir a liberdade de ir e vir, o patrimônio e até a integridade física das pessoas. O resultado seriam eleições tumultuadas, pondo em risco uma transição pacífica de governo.
A posse de Lula marcou a primeira alternância real entre elites no poder depois do período autoritário, como demonstra Leôncio Martins Rodrigues em suas pesquisas recentes. Resta saber se a atual elite governante e seu partido dominante acatarão o veredicto das urnas e a alternância entre elites no poder que daí deverá decorrer: será o teste de fogo para a democracia brasileira.
*José Augusto Guilhon Albuquerque é professor titular da USP.
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