O Estado de S. Paulo
Os apoiadores do governo Dilma quiseram se contrapor às manifestações de ontem, domingo 15 de março, e perderam. Perderam, antes de tudo, porque na sexta-feira puseram menos gente nas ruas e não conseguiram dramatizar o ato que organizaram. Foram superados em alguns bons milhões, o que não é desprezível se considerarmos que povo nas ruas era, até então (ou até 2013), uma espécie de monopólio do PT.
Foram efetivamente milhões contra o governo. Especialmente da classe média e da “classe alta”, pelo que se pôde ver na superfície, nas caras, no estilo. Eleitores tucanos, na maioria, com certeza. Mas teria sido somente isso? O povão terá permanecido indiferente, alheio à massa de gente que se manifestou? Fechou-se em silêncio para reiterar o apoio ao governo? Não há como saber. Os governistas disseram que foi uma manifestação de “brancos”, que os negros ficaram em casa.
Falaram que as pessoas foram induzidas e estimuladas pela Globo e pela “mídia golpista”, que os “fascistas” eram a maioria. Tentaram fazer de tudo para deslegitimar os protestos. O que fica são as imagens da TV, um pouco de bom senso analítico e as vibrações da corrente elétrica que tomou conta de muitas cidades e que, em São Paulo, permaneceu ativa durante 12 horas. Perto da meia-noite ainda se ouvia uma panelinha aqui e ali.
Foi um barulho emblemático, simbólico, polifônico e em boa medida espontâneo, fora de controle. Expressou a babel brasileira em ação, juntando democratas irritados, gente desencantada com a política, grupos saudosos da ditadura e pessoas que acreditam que uma “intervenção militar” pode endireitar o país. Falou-se contra o PT e o comunismo, como se fossem sinônimos, contra a corrupção, contra os políticos e os partidos. Vestidas de verde-e-amarelo, as vozes pareciam querer se unir em torno da defesa de um País. Não necessariamente de uma comunidade política.
O governo também perdeu quando quis reagir. Não porque escalou Rossetto e Cardoso para falarem pela Presidente. Eles até que cumpriram o que deve ter sido combinado. O problema foi o script, o teor da fala, a postura. Nenhuma novidade, nenhuma proposta, nem sequer um minúsculo reconhecimento de que há um fosso entre as ruas e o Palácio. Ofereceram o mesmo lenga-lenga de sempre, sem nem se darem ao trabalho de requentá-lo.
O governo Dilma errou feio quando fez de conta que não sentiu a pancada. Não saiu do córner para onde foi empurrado. Isolou-se um pouco mais. Continuou a insistir nas mesmices que adotou como discurso desde 2013: há uma crise mundial, não temos culpa pelas dificuldades, fizemos tudo certo até agora mas o modelo se esgotou e a conjuntura conspira contra, estamos empenhados em estruturar um pacto contra a corrupção e pela reforma política.
O panelaço que acompanhou a entrevista dos ministros foi uma declaração bombástica: mudem o disco, este que continua a nos ser oferecido ninguém mais quer ouvir.
Foi preocupante. Não é bom para a democracia que um governo recém-eleito fique nas cordas, sem capacidade de reação inteligente. Como não cairá — não há golpe nem impeachment com chances reais de afirmação –, a perspectiva de tê-lo enfraquecido e zonzo por mais quatro anos não é boa. Poderá deixar as coisas ainda piores, sobretudo no chão duro da vida. Não somente na política.
Por isto, hoje há uma única pergunta pedindo respostas: e agora?
O importante não é descobrir os próximos passos dos oposicionistas, se haverá ou não novas manifestações, se serão ainda maiores e envolverão as forças políticas, ou se a onda arrefecerá na praia. O importante é, por um lado, ver o efeito disso na democracia, no sistema político e nos partidos: ver como reagirão, se conseguirão estabelecer um link ativo com as ruas, se conseguirão ser mais protagônicos e ajudar a organizar politicamente a virtude das ruas. Por outro lado, e sobretudo, é saber o que fará o governo Dilma, o PT, sua base parlamentar. Não é razoável achar que não farão nada. Não é razoável, mas a vida não é feita só de ações e reações razoáveis. Sempre há cordas e espaços para quem pensa em se enforcar.
Os políticos brasileiros — todos eles, sem exceção — têm cultuado um desconcertante desprezo pela interação social: não dialogam com o povo, não vão aonde ele está, só o procuram em épocas eleitorais. Não demonstram qualquer disposição para compreender a sociedade que aí está. São “antissociológicos”, digamos assim: acham que sociologia e análise sociológica são coisas de intelectuais acadêmicos, diversionismo e perda de tempo. Parecem desconhecer o mundo em que vivem, não reconhecem que o modo de vida mudou, que as pessoas são diferentes e estão mais massificadas do que nunca, não cabendo mais nos esquemas analíticos dicotômicos: nós e eles, ricos e pobres, burgueses e proletários.
A própria dupla esquerda x direita — que continua vivíssima, assim como o conflito social — ganhou contornos mais complicados. Os políticos precisam se libertar dos chavões dogmáticos que fazem com que a luta de classes se converta em expediente doutrinário para a luta política e perca densidade como critério de análise política. Não adianta falar em correlação de forças sem que se compreenda o estado atual das forças em jogo. São completamente insuficientes os lugares-comuns do “bom governismo”: estamos fazendo o melhor, o certo e o possível, mas nossos inimigos não nos dão trégua e não nos deixam fazer mais. Falar em participação e democracia é fácil, difícil é viabilizar isso como critério de sustentação governamental e de governação.
O governo Dilma ainda tem 14 rounds pela frente, depois de ter saído grogue do primeiro. Os que estão contra ele hoje ainda não estão articulados e nem apoiam seus adversários da oposição política.
O governo tem tempo e recursos para sair do córner e agir com inteligência. Deveria começar por um ajuste no discurso e na comunicação, explicar porque não consegue cumprir as promessas eleitorais de 2014, caprichar na linguagem. Pode mexer no ministério: incluir nele uma boa cota de figuras dotadas de brilho próprio e liderança. Se fizer isso, porém, para dar mais peso ao PMDB e acalmar a tropa no Congresso, pulará no precipício. O governo e o PT deveriam reformular o modo como praticam o presidencialismo de coalizão. Se quiser ganhar corpo e decolar, o governo pode até mesmo acenar para a oposição, chamá-la para conversar e fazer algo em conjunto.
Para qualquer uma destas opções, porém, precisa se desvencilhar da empáfia, da arrogância e da autossuficiência, aceitar que errou em certos pontos, que não retém toda a sabedoria política e gerencial da nação, que a crise é real e complicada não só porque o capitalismo globalizado é real e complicado, mas porque a sociedade brasileira é real e complicada, não tem donos nem patronos.
Podemos esperar algo assim?
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Marco Aurélio Nogueira é professor de Teoria Política na Unesp
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