- O Estado de S. Paulo
“Uma casa dividida contra si mesma não subsiste”
Abraham Lincoln, junho 16, 1858
Concordo que a atual crise é a mais grave que já tivemos. E vou além ao afirmar que o Brasil, por sua cultura e estrutura política, não está preparado para administrar uma crise dessas proporções. Isso porque para enfrentá-la e resolvê-la seria necessário construir uma resposta sistêmica que unificasse os principais atores políticos num projeto de ação dotado de lucidez, vontade política e audácia.
Houve uma grande oportunidade de preparar o Brasil para enfrentar o enorme desafio que se anunciava: a eleição presidencial de 2014. Mas o PT não podia perdê-la, pois precisava de mais um mandato para completar seu domínio e controle sobre o sistema político. Em seus três mandatos o PT teve condições legais e recursos para iniciar e dar curso à implantação do seu projeto de poder, mas não teve tempo para concluí-lo.
Enquanto era um partido pequeno, que se autoexilava politicamente pelo radicalismo, as crises eram resolvidas por negociações entre os partidos tradicionais. Diante da crise, a resposta era o “pacote” e o apelo à união nacional, um guarda-chuva conceitual aceito por todos e que a todos retribuía. Assim foi com o Plano Cruzado, com o governo Itamar e, em 1994, com o Plano Real. Totalmente diferente é a situação atual.
Enquanto esteve fora do poder o problema político típico desta crise não se apresentava nem para ele nem para o País. Com o PT no poder essa união nacional se tornou muito difícil. Ela é importante para os empresários e partidos tradicionais. Não tem a mesma importância para o PT.
Com a crise o PT perdeu o rumo: não pode mais praticar a única forma de governar que conhece e aceita e é forçado a engolir um remédio amargo, na menor porção que lhe for possível, sem deixar de lembrar ao povo que assim que a situação melhorar voltará a fazer mais do mesmo.
Conquistou o poder, na eleição de 2002, quando e porque Lula promoveu o encontro da esquerda com o marketing político e tranquilizou o eleitorado com a Carta aos Brasileiros. Só agora, passados 13 anos, está sendo cobrada do PT a promissória que Lula entregou em 2002. A
Carta era uma forma de abrir a porta do sistema político para o PT, não uma “tocante” conversão ao mercado, à globalização pós-socialista e à democracia representativa, como muitos entenderam.
Logo após a eleição de 2014 as nuvens de tempestade começaram a se juntar. À crise moral – de dimensão até então insuspeitada – somaram-se a crise resultante do descontrole econômico, a crise política, a crise nas relações sociais e a decorrente do grau de desconfiança na solidez das instituições e na racionalidade das decisões. Ao agregar tantas dimensões, a crise aumentou incrivelmente o número e a diversidade dos seus protagonistas (players) e a gravidade dos problemas e desafios a resolver.
O PT está imobilizado diante da crise porque a solução que se propõe para ela colide com seu projeto político, é radicalmente diferente dos projetos de PMDB e PSDB, por implicar mudanças substanciais e radicais no sistema político – na Constituição, nas relações sociais, econômicas e políticas do País.
Esse projeto se propõe a emascular a democracia representativa, fragilizando-a com organizações com funções representativas, aparelhadas e politicamente alinhadas ao governo e ao partido (projeto de decreto presidencial 8.243/14); a controlar os veículos de comunicação social (projeto de regulamentação das comunicações); a fazer alterações constitucionais como reeleições sucessivas; a regulamentar espaços privados dos cidadãos com imposição de valores, interferência nas funções da família e controle político da educação; criar o financiamento público exclusivo das eleições.
Que o plano político do PT segue essas linhas atestam os projetos com que mais se identifica. Nenhum deles, entretanto, poderá ser desenvolvido sem o controle do Estado. Não será recuperando a economia nos marcos do capitalismo e pelas regras do mercado que esses objetivos serão atingidos.
O próprio comportamento não comprometido da presidente com as medidas ortodoxas necessárias; sua evidente má vontade com o ministro da Fazenda; sua pressa em reafirmar que a crise não passa de dificuldade passageira; sua absoluta negativa em cortar despesas públicas; sua insistência em acenar não para o aperto, e sim para a retomada do crescimento (sic) e dos projetos sociais indica claramente que o projeto de poder não foi engavetado.
Apesar dos índices recordes de rejeição, o governo ainda tem fichas para permanecer na mesa de jogo. Se até agora não pôde recuperar as condições que teve e perdeu, consegue ao menos usar seu “poder de veto” e a caneta das nomeações para conquistar apoios, bloquear jogadas adversárias, interferir no timing do processo, ao mesmo tempo que resiste furiosamente a reduzir despesas.
A crise econômica não leva o PT a repensar criticamente seu modelo e a crise venezuelana, como horizonte possível, ao que tudo indica, não o assusta. O que está em jogo é um conflito político que o PT evita revelar: a disputa entre uma política nos marcos da Constituição e dos avanços econômicos obtidos na gestão do presidente FHC e uma política de natureza socializante, pós-URSS, nos moldes do que ocorre em vários países da América Latina.
Não há, pois, entre o PT e a classe política dos partidos tradicionais um valor compartilhado e de maior hierarquia que pudesse estabelecer a base para um acordo de alto nível ante a crise. Quando se expurgam as ingenuidades e ilusões, o que há são duas visões de País e da crise que se excluem mutuamente.
Por essas razões acredito que a crise é maior do que a capacidade de nosso sistema político instável resolvê-la satisfatória e tempestivamente. Entre a pressão das ruas e o salve-se quem puder da classe política, não encontraremos o caminho para sair bem dessa crise.
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*Francisco Ferraz é professor de ciência política e ex-reitor da UFRGS
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