A receita de FHC
Uma das vozes mais sensatas da política nacional, o sociólogo e ex-presidente Fernando Henrique Cardoso volta a exercer o papel que o caracterizou desde a saída do poder: o de analista desapaixonado da vida brasileira. Em entrevista à ISTOÉ, ele faz uma série de alertas ao presidente Michel Temer, ao PT e ao seu próprio partido, o PSDB
Débora Bergamasco - IstoÉ
No momento em que o mundo, em especial o Brasil, é chacoalhado por turbulências políticas, econômicas, sociais e culturais, o sociólogo Fernando Henrique Cardoso se impõe como um das raras vozes capazes de fazer uma leitura do cenário atual desprovida de paixão. E, aos 85 anos, ele não parece disposto a pendurar as chuteiras. É quando o sociólogo se encontra com o político. Não à toa, antes mesmo de o impeachment ser aprovado no Senado, o então vice Michel Temer procurou o ex-presidente tucano. Quis aconselhar-se com ele, saber o que pensava sobre o processo de deposição de Dilma e, obviamente, pedir-lhe apoio. Conversaram longamente. Temer e FHC se conheceram em São Paulo na década 80. Não é possível dizer que são íntimos ou companheiros de mesa e copo, mas, segundo colegas de ambos, nutrem admiração e respeito um pelo outro. Depois da posse, Temer e Fernando Henrique ainda não se encontraram pessoalmente. Mas o presidente planeja estar em breve com o tucano para uma prosa sobre esse período de transição pelo qual passa o País. A depender do que revelou em entrevista exclusiva à ISTOÉ, o peemedebista terá à disposição uma extensa lista de contribuições e aconselhamentos. Dez anos mais velho e do alto de seus dois mandatos à frente da Presidência do Brasil, quando precisou, assim como Temer, pavimentar uma travessia política e econômica, Fernando Henrique apóia e torce pelo novo governo, mas emite uma série de alertas.
Horizonte de esperança
À ISTOÉ, Fernando Henrique Cardoso falou dos desafios que o novo governo enfrentará. Apontou caminhos. “Aqui, nesse momento, estamos sentindo falta de mais explicações”, disse. Assim como fez em 1993 ao apresentar o Plano Real, o ex-presidente adverte para a necessidade de o governo Temer ser claro e falar mais com a população sobre a necessidade do ajuste fiscal e suas implicações. “É dizer por que tem que tomar essas medidas e o que vai acontecer depois. E então desenhar o horizonte de esperança.” Para ele, o governo precisa ser mais firme. Traçar um caminho, ter convicções, não titubear e mostrar aos brasileiros um rumo. Embora elogie a relação de Temer com o Congresso Nacional, o ex-presidente destaca que haverá obstáculos complicados a serem vencidos porque os parlamentares são mais sensíveis aos anseios da opinião pública. Por isso, para ele, é fundamental que a nova gestão seja transparente a fim de convencer a população a apoiar medidas impopulares, sem as quais o presidente não vai conseguir tirar o Brasil do atoleiro. Para o resgate da economia, além de disciplinar as contas, Temer, na avaliação de FHC, acerta quando propõe um pacote de novas concessões. O tucano destaca, no entanto, que aliado aos investimentos deve vir “a atenção às pessoas”. E, por isso, passam controle da inflação, mas também a baixa na taxa de juros, pois são sinais que, segundo ele, as pessoas conseguem sentir no seu dia a dia.
Líder da transição
FHC considera que o Brasil se ressente de uma voz. Em outubro de 1992, o então vice-presidente , Itamar Franco, assumiu o lugar do impeachado Fernando Collor de Mello. Três dias depois, Fernando Henrique foi nomeado ministro das Relações Exteriores e passou a auxiliar na conturbada missão da nova gestão de restituir a estabilidade política e econômica. O País vivia tempos de desesperança. Enfrentava uma crise moral, provocada pelos escândalos de corrupção, enquanto a renda dos trabalhadores era corroída pela hiperinflação, que chegou a mais de 2.700%. Naquele ano, depois de muitas tentativas frustradas, Itamar convocou seu chanceler para comandar a Fazenda. Sociólogo por formação, FHC chefiou a criação do Plano Real com a ajuda de uma equipe de economistas. No dia do lançamento do plano que reconduziria o País à estabilidade financeira, foi apresentada aos brasileiros a proposta de aumento das alíquotas em 5% de todos os impostos, um corte de US$ 22 bilhões no orçamento e a criação de um fundo de emergência, reservando 15% das tributações para pagar programas sociais. O porta-voz das aparentes “más notícias” foi FHC. Ele discursou: “Haverá um sacrifício, indiscutivelmente. De todos. O desânimo que se sente aqui e ali, não é um desânimo de quem não acredita no País. É um desânimo de quem está olhando para cima e não vê sinal. E estamos emitindo aqui alguns sinais”. Naquele momento, FHC entendeu o Zeitgeist, palavra alemã usada para designar o chamado espírito do tempo. Vinte e quatro anos depois, FHC volta a exercer esse papel, agora como observador e analista da cena política brasileira. Ele não olha só para o novo governo. Suas reflexões envolvem o próprio ninho, o PSDB, com quem também tem promovido conversas periódicas, principalmente com o presidente nacional da legenda, senador Aécio Neves (PSDB), e o PT. Para ele, tucanos e petistas precisam se modernizar. Na avaliação de FHC, o PT passou a amar o poder mais do que amava as pessoas. “Aí deu no que deu”, disse. Sobre o PSDB, ele reafirmou a intenção do partido de permanecer ao lado de Temer, desde que seja cumprido um programa de governo. “Se o Temer seguir essa direção, terá nosso apoio. Essa direção é dura, porque implica em medidas que são aparentemente não populares”, disse.
"Escreve aí que eu ri"
Menos por teimosia do que por vaidade e estratégia político-eleitoral, o sucessor de FHC, o petista Luiz Inácio Lula da Silva, sempre fez ouvidos moucos para os conselhos do tucano. Apesar de serem uma espécie de irmãos Karamazov da política, e já terem dividido o mesmo palanque, a relação entre eles nunca foi de fato azeitada. Não à toa, se estranham até hoje. Há duas semanas, o petista acusou FHC de falar “muita bobagem”. Na entrevista à ISTOÉ, o tucano respondeu em tom de ironia. “Escreve aí que eu ri”. Especificamente sobre a denúncia do MPF contra Lula por corrupção e lavagem de dinheiro, FHC foi lacônico. Disse preferir ficar de espectador e que lamentava profundamente o fato de alguém com a trajetória política do petista chegar a essa situação. “Sou uma pessoa cautelosa. Deixo o assunto para a Justiça”, afirmou.
Durante o primeiro mandato, a pupila de Lula, Dilma Rousseff, chegou a trocar gentilezas com o tucano. Almoçaram juntos uma vez. Mas não passou disso, certamente por influência de Lula. Em 2013, quando a população inundou as ruas em todo território nacional com aspirações difusas, porém transbordando uma sensação mal-estar, emissários de Lula e de Dilma procuraram Fernando Henrique para discutirem juntos caminhos para reagir e atender a essas surpreendentes manifestações. O tucano respondeu aos interlocutores que estaria disposto, mas desde que fosse demandado. Os petistas não levaram a idéia adiante e perderam a oportunidade de, talvez, evitar o desfecho traumático da deposição presidencial. A eloqüência intelectual de FHC se impõe novamente. A história mostra que é recomendável escutá-lo.
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso recebeu a reportagem de ISTOÉ, na última semana, no Instituto FHC. Em duas horas de entrevista, fez uma avaliação da atual conjuntura política e apontou caminhos para o PSDB, o PT, o PMDB, e também para o País:
• Quando essa sensação de instabilidade política e social vai passar?
Fui ministro do Exterior e da Fazenda do presidente Itamar Franco, que também foi um governo que ocorreu por causa de um impeachment. Recordo que naquela época, também foi muito difícil. Havia muita greve, muita coisa. Quando é que as coisas acalmaram? Quando foi possível enfrentar o principal problema da época, que era a inflação. Hoje a situação é diferente, mas tem esse ponto de similitude. O povo, hoje, está sentindo um mal-estar por causa de um desastre que a política anterior causou no Brasil, vindo de longe uma desorganização muito grande. Não só a questão do desemprego, mas também tem a situação angustiante de “e amanhã, o que é que eu vou fazer? Vai ter horizonte?”. Para acertar a questão fiscal, você vai tomar medidas que vão ser percebidas como mais duras. O objetivo maior, que é obter renda e emprego, não vem de imediato. É uma travessia. Dilma simbolizou a crise que levou a isso. O (presidente) Michel Temer não tem relação direta com a política que levou a isso. Mas o povo não faz essas distinções, só sente as conseqüências.
• Como o novo governo pode ajudar a superar esse mal-estar mais rapidamente?
É preciso que o governo Temer tenha rumo e firmeza. Tem que oferecer ao país uma perspectiva. A minha função, quando fui ministro da Fazenda, foi principalmente falar, explicar. Aqui, nesse momento, estamos sentindo falta de mais explicações. Por que tem que tomar medidas e o que vai acontecer. E desenhar o horizonte de esperança.
• Como essa comunicação poderia acontecer e por que, na sua opinião, ela não está sendo feita?
É preciso que alguém encarne esse projeto, preferentemente o presidente da República. Ou algum ministro. Tem que explicar permanentemente cada coisa. E a sociedade hoje é mais complicada do que há 20 anos. Hoje tem a internet, mais informação, a angústia vem mais depressa, é preciso dar muito mais atenção a este processo. Tem umas questões mais técnicas como o teto dos gastos, questões trabalhistas, mas como se traduz isso para o povo? Por exemplo, pega a Previdência. No Brasil, você tem uma cultura nacional que acha que quanto antes você se aposentar, melhor. Não é que as pessoas não queiram trabalhar. Elas querem se aposentar para continuar trabalhando. Então, você tem um problema que está ligado à profunda desigualdade brasileira. Por isso, não basta o argumento de que “ah, eu não vou ter dinheiro para pagar você”, o que é verdade. Tem que mostrar também como é desigual o sistema de aposentadoria hoje.
• Mas é difícil a pessoa entender que, eventualmente, ela vai perder direitos…
O problema são as corporações, porque o Congresso Nacional vai enfrentá-las. Aí não tem jeito, vai ter que ter firmeza. Você tem que ter convicção do que vai fazer. A gente entende que esse governo é conseqüência de uma decisão constitucional. Quem votou no Michel Temer foi quem votou na Dilma. Quem está gritando “Fora Temer” foram os que votaram nele. Por outro lado, como vice-presidente do Brasil, ele não recebeu o voto direto. Não necessariamente o vice é um líder popular. Quem vai levar adiante essa transformação não tem o voto do povo, embora seja legal e legítimo.
• Quais são outras medidas necessárias para recolocar o País nos trilhos?
O governo tem que ganhar mais confiança mostrando que tem rumo. O governo Temer não tem descuidado do contato com o Congresso, isso é importante. Agora, o grande problema que ele vai ter que enfrentar é que o Congresso reflete também o que se chama vagamente de opinião pública. A Dilma perdeu a opinião pública e o Congresso. O governo Temer tem o Congresso, mas a opinião pública é que está na dúvida. Então ele tem que dirigir-se muito mais à opinião pública. E como não é um governo derivado de um impulso do voto e as pessoas estão muito nervosas, o alvo continua sendo quem está no poder. A batalha é dizer: nós vamos dar os primeiros passos para o caminho novo, melhor. Mas aí tem que ter o crescimento da economia, obviamente. O que a população entende? É emprego, é renda, controle da inflação. Um problema dessa natureza não se esgota em dois anos.
• É legítimo, se ele fizer um bom governo, querer se candidatar à Presidência?
Mas aí não precisa querer. Os outros é que vão querer. Não adianta você querer ser presidente da República. Os outros é que têm que querer que você seja. Mas se ele for muito bem e os outros quiserem, quiseram. Porque para o Brasil é bom que se tenha um resultado positivo. A briga se é esse ou outro é nossa, não é do povo. O povo vai votar em quem ele sentir confiança.
• Qual é a importância da economia para esta transição?
A economia é crucial. É necessário dar sinais sensíveis de que a economia está indo na boa direção. Tem que apresentar novas boas. É possível e estão até tentando. Mas você também não pode cair na ilusão contrária de que basta o investimento. Tem que ter atenção às pessoas também. O óbvio ululante e que você não pode perder de vista é o slogan que acho que foi do Bill Clinton: “People First”, ou, primeiro as pessoas. O que as pessoas sentem? Quais são suas dificuldades? A educação, saúde, segurança, mobilidade. E agora tudo é questão de renda e trabalho. Mas o que falta mesmo? Falta “to take care” (cuidar). Atenção, cuidado, carinho.
• O sr. acha que a população hoje, nesse contexto atual de mal-estar e angústia, tem ouvidos para escutar o que o presidente tem a falar?
A pessoa só escuta quando sente que quem fala tem força. Muita gente se queixa: “não tem liderança, falta liderança”. Porque nós vivemos em uma sociedade que é de massas, 200 milhões de pessoas, na qual a articulação social estava antigamente marcada por classes.
• E como neste contexto alguém consegue se tornar um líder?
A mídia tem papel decisivo. E penso que ela nem tem muita consciência disso, nem ela faz por articulação, ou por conspiração. Mas quem aparece? Quem é bizarro, e aí você tem um número enorme de pessoas que vão bem na televisão ou no rádio e viram candidatos. Também quem é capaz de se expressar com clareza, ou quem tem uma sigla, ou uma seita religiosa ou mesmo esportiva. E está difícil no mundo todo. E aí surgem coisas bizarras, como o candidato à Presidência dos Estados Unidos, Donald Trump.
• O presidente Temer consegue demonstrar essa liderança?
Acho que até agora não. Até agora ele não teve condições para isso. Ele nunca foi naturalmente isso. O presidente Temer, quando foi candidato majoritário, foi como vice. Ele foi candidato proporcional, que é muito diferente. O que ele tem de vantagem? Uma enorme experiência de negociação com o Congresso. E uma formação cultural, professor de Direito e tal. E ainda presidente do PMDB por 15 anos. Agora, vamos ver se ele dá um salto. Está faltando no Brasil uma voz. A política precisa de palavra, quem fale. O verbo.
• Além da crise econômica, temos outras crises, como a moral, por exemplo.
Tem a crise moral e a crise que a Lava Jato simboliza. Nunca houve nada de tamanha profundidade no Brasil porque nunca houve tamanha extensão de malfeitos com a bênção do governo. Aqui o Temer significa uma ruptura nisso. Na questão da corrupção, pela ordem é PT, PP e só depois o PMDB.
• E o que o governante tem que fazer para resolver a crise moral?
Tem que mudar nossa cultura de permissividade. É preciso que os de cima deem exemplo. A presidente do Supremo, Cármen Lúcia, dirige seu próprio carro. É um sinal de que é uma pessoa simples. No Brasil houve um momento de embevecimento pelo poder. Precisa baixar um pouco essa temperatura e voltar à coisa mais republicana. Isso implica em redução de privilégios.
• O presidente Temer disse que talvez não coloque os quadros dele nas repartições públicas, também não quis usar a faixa presidencial…
O Temer é uma pessoa simples. E eu acho que está certo. A faixa, em certas circunstâncias tem que por. O que ele está tentando dizer é: “Olha, sou mais simples”. Houve um pouco de exagero disso no Brasil.
• Em que época houve exageros?
Houve exageros do Lula em diante. Essas coisas de muita pompa. E é patético porque o Lula vem de líder sindical. Isso choca mais. O sistema que foi criado é de abuso, de “eu posso tudo”. Não pode. Tem que ter uma coisa mais republicana. Política é palavra, é gesto.
• Lula disse que o sr. fala muita bobagem. O que tem a dizer?
Escreve aí que eu ri.
• Que papel o PSDB deverá exercer?
Eu li uma entrevista do Aécio (Neves, presidente do PSDB) dizendo que nós apoiamos um programa de governo e, se o presidente Temer seguir essa direção, terá nosso apoio. Essa direção é dura, porque implica em medidas que são aparentemente não populares. O PSDB está nessa posição. Mas é importante alertar: o PSDB sozinho não tem forças para mudar essas coisas.
• A esquerda falhou?
Essa esquerda. O PT foi uma tentativa de renovação até certo ponto. O PT nasceu junto com o governo social e com a igreja. O que sobrou? O sindicalismo. O núcleo ficou sendo o sindical. Os católicos se afastaram. Mas onde foi que ele se complicou? Primeiro porque ele manteve a visão antiga da esquerda a idéia de hegemonia: eu sou o bom, logo o outro é mau. E o que eu faço? Liquido o outro. É uma parte não democrática. Embora ele venha de um partido que defende a democracia, a alma não é democrática. Eu li um artigo do Tarso Genro e estou de acordo com ele. O PT precisa se refundar. O partido foi um espaço de esperança, não precisava ter ido para os caminhos que foi, não precisava ter demonizado o PSDB. O PT passou a amar o poder mais do que amava as pessoas. Aí deu no que deu.
• Como deve ser o tratamento do novo governo à questão da política atual?
Essa questão político-eleitoral é dramática. Eu acho que o governo não pode deixar de dar sinais claros de que nós vamos mudar esse sistema. Porque está esgotado.
• Quanto seria um número razoável de partidos?
O número de partidos importa menos, mas sim o fato de eles representarem idéias. E o governo Temer tem tempo suficiente para mexer nisso. E se começar a mexer nisso, o povo gosta, desde que explique.
• Hoje as pessoas sentem que a vida vai melhorar?
Não. E se conseguissem, era mais fácil. A mídia faz um esforço grande na área econômica para achar que vai melhorar, mas as pessoas não sentem ainda. Não sentem porque falta a voz, falta a palavra, a voz da esperança. Você não pode fazer uma nação sem esperança. Não se faz uma nação só no sofrimento. E mesmo quem está sofrendo quer imaginar que amanhã não vai sofrer tanto. Isso é política. Não é só tomar atos. Você tem que tornar aquilo simbólico e mostrar que você vai para o paraíso amanhã. Os jihadistas não se matam porque vão ter 70 virgens? E a política é um pouco religião. Mas na política você promete e tem que entregar em vida.
• Como deve ser a relação do governo com o Congresso?
Eu tive o mesmo problema como presidente, porque precisava fazer reformas. Algumas eu consegui, outras não. Consegui quando a opinião pública se deslocou para o meu lado. Uma das grandes ilusões do nosso presidencialismo é imaginar que ele é imperial. Dá impressão que é, mas não é. O presidente que pensa que pode tudo está perdido.
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