- Valor Econômico /Eu & Fim de Semana
A crise dos Estados é um monstro com muitas cabeças. O descalabro fiscal é apenas uma de suas faces. O entendimento dessa complexa criatura ajuda, em primeiro lugar, a descobrir por que unidades estaduais como o Rio de Janeiro e o Rio Grande do Sul chegaram ao fundo do poço financeiro. Ademais, é preciso compreender que o sentido e a magnitude do problema vão além da dificuldade de fechar as contas no final do mês. E, fechando o círculo vicioso, cabe frisar que esse fenômeno terá efeito para além de seus governantes e fronteiras.
A origem de tudo está no sistema político estadual. Há um enorme desequilíbrio entre os ramos de poder, com enorme poderio nas mãos dos governadores e Assembleias Legislativas frágeis e voltadas para si mesmas. Desse modo, as ações dos governantes são pouco ou quase nada fiscalizadas, abrindo-lhes espaço para quebrar as contas públicas e/ou para praticar a corrupção.
Isso parece mais óbvio com a prisão dos ex-governadores do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral e Anthony Garotinho, mas muitos outros praticaram ilícitos como eles, só que não foram presos. Ao contrário, alguns depois foram trabalhar em Brasília, no Executivo ou no Congresso Nacional, subindo de escalão na carreira política.
Obviamente que governantes no plano federal também podem cometer atos deletérios ao interesse público. Porém, nunca com o mesmo arbítrio e falta de transparência, ou sem um conflito grande com as demais forças políticas, porque os congressistas são muito mais fortes e independentes do que os deputados estaduais.
O presidencialismo de coalizão, com todos os problemas que podem lhe ser debitados, é uma forma de equilibrar o jogo político, reduzindo os anseios e comportamentos mais despóticos, ao passo que o ultrapresidencialismo estadual ancora-se na falta de controle parlamentar dos governadores. Onde estava a Alerj durante os governos da família Garotinho e de Sérgio Cabral? Assista a uma sessão da CPI da Merenda em São Paulo e compare com CPIs que balançaram o poder de Collor, Fernando Henrique, Lula e Dilma.
A fraqueza das Assembleias Legislativas se explica por vários motivos. Primeiro, a baixa capacidade legislativa dos Estados torna o parlamento pouco relevante, um lugar onde há pouco conflito com o Executivo. É interessante notar que, além do menor número de competências legais, as unidades estaduais dividem boa parte de suas atribuições nas políticas públicas com os municípios (a maior exceção é a segurança), e essa situação toda faz com que os Estados sejam menos visíveis aos cidadãos.
As pesquisas de opinião desde a década de 1990 revelam que a população considera os governos federal e municipal muito mais relevantes em suas vidas. O que parece ser uma fraqueza, paradoxalmente, pode ser uma força: ao serem menos vigiados pela sociedade, os governadores apanham menos da mídia e, voltando ao sistema político, sofrem menos com a ação dos oposicionistas nas Assembleias.
Os deputados estaduais, em segundo lugar, estão em um posto espremido entre os prefeitos e os deputados federais. Um otimista diria que eles estão em um lugar de passagem para quem quer ganhar uma prefeitura ou chegar ao Congresso Nacional. Mas enquanto nenhum dos dois sonhos chega, o deputado estadual é frágil diante dos outros líderes locais. E essa posição mais fraca dificulta sua ascensão política e os transforma em reféns dos governadores.
Claro que há momentos em que os Legislativos estaduais ganham vida, principalmente quando uma pauta social ou do funcionalismo consegue atrair a opinião pública. O Legislativo gaúcho geralmente é mais fiscalizador que os demais, e outros tiveram, em determinados momentos, um papel importante na construção da agenda de políticas públicas, como foi o caso da Assembleia cearense na realização do diagnóstico do problema educacional.
Esse ativismo das Assembleias, contudo, é pouco frequente e geralmente ocorre em momentos de crise, de um governante ou oligarquia que já não consegue se sustentar como antes. Nos momentos normais, sobra então aos deputados estaduais transformar seu ofício numa extensão das ações do Executivo. O governismo é sempre bem maior do que no plano federal, e os oposicionistas têm pouca visibilidade social, e ficam à espera da eleição, único momento em que se pode tematizar com mais força o desempenho dos governadores.
Ora, então o que faz com que políticos almejem ou continuem nas Assembleias? Além da possibilidade de surfar com o grupo que detém o poder estadual, o conjunto de recursos financeiros nas mãos dos Legislativos estaduais não é desprezível dentro de uma lógica "rent-seeking", de auferir renda com pouca competição ou esforço eleitoral. Não se trata de um montante gigantesco em relação ao Orçamento total, mas é o suficiente para fragilizar ainda mais o controle parlamentar sobre o Executivo.
O sistema de fiscalização dos governadores é ainda mais frágil porque a maioria dos Tribunais de Contas não exerce o controle adequadamente. Muitas estripulias fiscais foram feitas nos últimos dez anos pelos Executivos estaduais, algumas deixariam ruborizada a equipe econômica do governo Dilma. Entretanto, nenhum governante estadual foi ou será cassado por isso. Soma-se a isso o menor ativismo dos Ministérios Públicos estaduais em relação aos governadores, fato que deixa aí uma boa pergunta de pesquisa sobre as razões de tal diferença em relação ao Ministério Público Federal.
O fato é que os desmandos administrativos e a corrupção são bem menos controlados nos Estados, e nunca Fernando Collor ou Dilma Rousseff teriam sido cassados no posto de governador.
A lógica do sistema político estadual, por fim, é fundamental na reprodução da classe política que está em Brasília, no Executivo ou principalmente no Congresso Nacional. O distrito eleitoral mais relevante é o Estado e é a ele que os políticos federais precisam responder para obterem a reeleição.
Os escândalos federais, preste atenção leitor, geralmente têm uma conexão com as bases estaduais que os alimentam. Renan Calheiros, a família Sarney e outras oligarquias dependem do poder federal para ajudar seus eleitores, mas a sua sobrevivência e o reforço do poderio dependem igualmente de se manterem no poder estadual.
A crise dos Estados, portanto, tem origem no sistema político. Sua expressão atual aparece com o descontrole das contas públicas. Nesse caso, o aumento dos gastos com pessoal, especialmente com inativos, emergiu como algo que não estava no radar da opinião pública.
Do mesmo modo, os incentivos fiscais dados nos últimos anos, por vários Estados, são insustentáveis frente ao que se pode ter de crescimento da receita e da despesa no futuro próximo e os eleitores não se deram conta disso nas eleições passadas. Essa surpresa da sociedade se deve ao modelo político-institucional estadual, que é mais opaco e menos "accountable" do que o presidencialismo no plano federal. Assim, ao mesmo tempo em que é necessário fazer algum ajuste, é urgente o debate sobre o sistema político que permitiu essa bancarrota.
Só que o ajuste orçamentário, inegavelmente necessário, terá de ser feito num momento de recessão e empobrecimento da população. O casamento entre crise fiscal e crise social afeta os Estados (e municípios) de um modo diferente da União: os governantes estão mais perto da população, e quase todo o "welfare state" brasileiro é implementado pelos governos subnacionais. Em outras palavras, com a crise as pessoas vão precisar usar mais os serviços públicos e se Estados e municípios estiverem quebrados não poderão dar conta de toda essa demanda. O fim da equação é simples: menor capacidade de ofertar políticas públicas tornará o país um vulcão, com consequências imprevisíveis.
Daí que ajudar os Estados a sair da crise fiscal é uma tarefa que, no curto prazo, vai além da instalação de mecanismos de responsabilidade orçamentária. Sem dúvida alguma é preciso mudar alguns aspectos do gasto estadual, e de uma forma mais duradoura. Porém, isso precisa dar conta de dois outros fenômenos tratados aqui: de um lado, qualquer mudança no padrão de gastos estaduais passa, de maneira estrutural, por uma mudança na lógica do sistema político estadual, aumentando a "accountability" dos governadores, e, de outro, será necessário evitar o desmantelamento dos serviços públicos subnacionais para que o vulcão social não inviabilize a própria reforma do Estado brasileiro.
Cabe frisar que, mesmo que houvesse recursos para pagar todo o funcionalismo estadual, ainda assim se teria uma situação em que faltariam servidores e qualificação de gestão nos governos estaduais para lidar com os problemas da sociedade brasileira. O maior exemplo disso está na política de Segurança Pública, que se tornou um dos grandes problemas do país.
Desse modo, seria preciso fazer quatro coisas nos Estados: mudar a prática orçamentária, reformular a lógica do sistema político, dar conta da urgência social atual e criar uma máquina administrativa mais eficiente e efetiva.
Lidar com esse monstro de várias cabeças não será fácil e levará alguns anos. Mas é preciso começar logo a estancar essa crise e entender sua multiplicidade.
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Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e coordenador do curso de administração pública da FGV-SP,
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