- O Estado de S.Paulo
Que fazer para evitar o pior? Já observamos muito o caos, talvez seja hora de atenuá-lo
O naufrágio é a perda do horizonte. Estamos todos em busca do horizonte. O período que se abre com a denúncia contra Temer tende a ser bastante confuso. Mas é, de certa forma, um passo previsível na trajetória da crise em que nos metemos.
Procuro alguns elementos na conjuntura que nos possam ajudar a navegar na neblina. Os barcos dispõem de sensores precisos. Não temos instrumentos científicos, apenas algumas intuições. Nossa neblina é mais densa que a simples condensação de água evaporada.
No entanto, algo se move e duas pequenas luzes parecem tremular ao longe. Uma delas tranquiliza: a corrupção não acabou, mas dificilmente terá, nos próximos meses, a mesma intensidade e ousadia do passado. O risco ficou maior: políticos e empresários não ignoram esse fator. A outra pequena luz é apenas uma referência. Ela indica que todas as saídas de curto prazo passam pelo Congresso. Aceitar ou não a denúncia contra Temer, eleger seu substituto ou mesmo alterar a Constituição, tudo passará por ali.
À medida que nos aproximamos do ano eleitoral, cresce o poder da sociedade sobre o Congresso. Pelo menos tem sido assim: com voto aberto formam-se maiorias que o segredo sufoca.
É verdade que esse Congresso abriu um imenso abismo entre ele e a sociedade. Mesmo assim, o instinto de sobrevivência costuma reaparecer nessa época. Não creio que a sociedade vá moldar o caminho em todos os seus detalhes, mas tem condições de escolher as linhas gerais, na medida em que as escolhas sejam postas.
Será difícil a cada instante debruçar-se sobre uma realidade deprimente, vencer a repulsa diante de um jogo político tão baixo. Mas é preciso.
De modo geral, o interesse pela política cresce nas vésperas das eleições.
A denúncia contra Temer encontra nele a mesma resistência que encontram as denúncias contra Lula. Não há provas concretas, dizem ambos, antes de atacar os acusadores, ressaltando que são perseguidos políticos.
Ela pode ser rejeitada ou não pela Câmara dos Deputados. Uma vez que o presidente duvida das provas, questiona sua concretude e conclui pela inépcia da denúncia, o ideal seria levar o tema ao STF.
Naturalmente, qualquer pessoa tem ideia do que é uma prova. Mas ultimamente essa palavra tem sido tão questionada que, ao contrário de outros povos, os brasileiros terão um grau superior de conhecimento sobre prova. Num futuro próximo talvez todos nós tenhamos uma ideia de prova, assim como temos uma escalação ideal para a seleção brasileira.
Para alguns, não há provas de que a mala com R$ 500 mil levada pelo deputado Rocha Loures tenha relação com Temer. Há apenas uma conversa entre o presidente e Joesley Batista, na qual Temer indica Loures como seu interlocutor de confiança.
Não há imagens de Rocha Loures entregando o dinheiro a Temer. Não há certidões oficiais que liguem Lula aos imóveis que a Justiça lhe atribui.
Os defensores mais ardorosos sempre poderão perguntar: onde está a imagem de Temer no táxi, recebendo a mala com que Rocha Loures saiu correndo da pizzaria? Onde está o registro de posse de Lula?
Uma das razões por que a denúncia contra Temer deveria ser aceita pela Câmara é a possibilidade de o tema ser discutido pelo Supremo, onde cada um dos juízes pelo menos já discutiu centenas de vezes o que é uma prova e os limites de sua validade. Mas mesmo no caso de a questão subir para uma decisão do STF, a sociedade está sempre sujeita, como no caso do TSE, a um conflito típico da fábula O Lobo e o Cordeiro.
A suposição é de que gastarão horas e latim para definir o que é um prova, qual a superioridade de uma prova sobre outra, antes de apresentarem o seu veredicto. Ao cabo dessa discussão podem concluir que existem provas e que são abundantes, mas devem ser ignoradas, em nome da estabilidade do País.
Creio que a sociedade esteja acompanhando tudo isso. E o fato de não se ter manifestado com ênfase se deva à própria confusão do quadro político.
O que seria eficaz nessas circunstâncias? O movimento “fora Temer”, inspirado pela esquerda, tem uma visão clara de combater as reformas. Até mesmo a reforma trabalhista, que contempla as transformações do capitalismo e uma nova correlação de forças.
Os trabalhadores reais que se viram num mundo precário não contam tanto como os sindicalizados, os que trabalham com relógio de ponto, numa disciplina fabril. Trabalhadores, para a esquerda clássica, são os que alimentam os cofres dos sindicatos com os impostos e povoam a ideia de uma classe operária dos livros marxistas do século 20.
À precarização do trabalho a esquerda responde com uma aspiração saudosista de voltarmos todos à segurança do passado, algo desejável, mas distante da vida real de quem se vira para sobreviver num mercado em mutação. Essa reforma seria importante no momento.
A da Previdência é necessária, no entanto, mais complicada. Precisaria de ter um foco no serviço público, que tem grande peso nos gastos e na cobrança da dívida das grandes empresas.
Isso só se consegue com apoio popular. As corporações têm muita capacidade de mobilização e as grandes empresas, poderosos defensores. Daí a expectativa de uma reforma da Previdência a partir da legitimidade do novo governo.
Apesar de toda a confusão, a sociedade não pode observar o que se passa como se tivesse um satélite explorando Jupiter. A crise é real, sobretudo para quem vive no Rio, onde há uma dezena de tiroteios por dia e um roubo de carga por hora.
Não se trata apenas do fracasso de um sistema político-partidário. Sem interferência da sociedade ele acabará arruinando o País por décadas.
O que fazer nessa confusão, o que escolher como prioridade para evitar o pior? Já observamos muito o caos. Talvez seja hora de atenuá-lo.
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* Fernando Gabeira é jornalista
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