- O Estado de S.Paulo
A declaração de Gleisi Hoffmann nega a essência da República e chantageia a democracia
“Para prender o Lula, vai ter que prender muita gente. Mas, mais do que isso, vai ter que matar gente. Aí vai ter que matar.” O pensamento, que se refere ao julgamento do próximo dia 24 pelo Tribunal Regional Federal da 4.ª Região (TRF-4), remete-nos aos tempos da pistolagem, do cangaço, da matança impune. É uma ameaça criminosa ao Estado e às instituições republicanas, feita sem cerimônia pela senadora Gleisi Hoffmann, do PT do Paraná, que também preside nacionalmente o Partido dos Trabalhadores.
A declaração mostra a magnitude da degradação ética das instituições. O quanto inexiste, em primeiro lugar, o compromisso de um parlamentar com o decoro – afinal, Gleisi Hoffmann ocupa uma cadeira no Senado e tem deveres no plano da dignidade comportamental em relação ao Parlamento e aos representados. Se bem que a pesquisa Latinobarómetro 2017 detectou que, para 97% dos brasileiros, os políticos no Brasil exercem o poder em benefício próprio, despreocupando-se do bem comum. Em segundo lugar, a declaração patenteia também a decadência dos partidos políticos no País, que a pesquisa Lapop da Universidade Vanderbilt 2017 verificou terem atingido o pior grau de credibilidade como instituições, comparando todas as edições da pesquisa.
No comando do PT, Gleisi afirma que será necessária matança para realizar uma prisão determinada pela Justiça. Ou seja, instiga a militância do partido e a própria sociedade à beligerância.
Na mesma linha de degradação, há poucas semanas Antônio Carlos Rodrigues, o presidente nacional do PR, foi preso por corrupção. Ele não renunciou e a executiva do partido não exigiu sua renúncia. Com Aécio Neves não foi diferente no PSDB.
Vale lembrar que o PT foi fundado, em 1980, sob o comando de Lula, um retirante nordestino obstinado, uma ascendente liderança do mundo sindical que se tornou conhecida liderando greves no ABC na categoria dos metalúrgicos.
Em plena ditadura, o PT veio trazendo a promessa do novo, apresentando-se como um partido para representar a classe trabalhadora, a classe média, a intelectualidade, o mundo artístico, contra o coronelismo. Pregou a ética e apresentava algo aparentemente inovador na cena política brasileira.
Nas primeiras tentativas eleitorais, Lula falava em romper com o FMI e simplesmente não pagar a dívida externa, entre outros temas que amedrontavam o mercado. Em candidaturas seguintes o discurso foi se modificando e amoldando às diretrizes dos marqueteiros antenados às expectativas dos eleitores, até, finalmente, a chegada à Presidência, em 2002.
Mas o processo do mensalão, por fatos ocorridos já no primeiro mandato, logo revelaria que as promessas não correspondiam exatamente à prática concreta quando da conquista do poder, o que, aliás, Antônio Palocci, que pertencia ao núcleo duro petista, escancarou na histórica carta de saída, quando chegou a afirmar que o PT tinha métodos que lembravam seita religiosa. Aliás, não se tem notícia de punições do PT aos corruptos do partido condenados em definitivo pela Justiça.
Ali ficou claro que a prática política petista não era diferente da dos demais grupos que assumiram o poder, perdendo-se a oportunidade de mudar o rumo da História do País, que, infelizmente, logo se viu imerso em gravíssimas denúncias de corrupção por atos cometidos por pessoas ligadas ao PT e a muitos outros partidos, na maior investigação de que se tem notícia no mundo, em magnitude de valores – a Lava Jato, em que, por sinal, Gleisi é investigada.
No mensalão evidenciava-se a atrofia do Legislativo. Os deputados eram comprados com mesadas e quem legislava na prática era o Executivo, totalmente hipertrofiado, violando-se o princípio da separação dos Poderes, essencial no sistema republicano democrático.
Nesse contexto, Lula é acusado criminalmente em sete processos e num deles foi já condenado a uma pena de nove anos e seis meses de reclusão por lavagem de dinheiro e corrupção. Sua condenação, sem sombra de dúvida, fere a sociedade brasileira. Mas, por outro lado, representa o amadurecimento do sistema de Justiça brasileiro, que hoje não mais se verga a intocáveis.
Não é admissível que qualquer indivíduo, da direita ou da esquerda, reivindique a condição de intocável. Precisamo-nos livrar urgentemente do foro privilegiado, para a prevalência da igualdade de todos perante a lei.
Uma democracia sólida funciona com instituições sólidas, com valores sólidos, com respeito ao povo. O eixo fundamental das atenções é o ser humano, e não o Estado ou a Igreja, como era no tempo do Absolutismo, de direito divino dos reis.
Essa ideia dos intocáveis e da cultura dos privilégios remete aos tempos da monarquia absolutista, em que tudo era determinado pelos humores do rei.
Hoje temos Judiciário independente, Ministério Público forte e corajoso e a distribuição de justiça tem evoluído a cada dia, não se intimidando com as velhas raposas.
No próximo dia 24 haverá o julgamento da apelação de Lula pelo TRF de Porto Alegre. Ele não é melhor nem pior que ninguém. Deve ser julgado na forma da lei. E a condenação por essa instância poderá torná-lo inelegível, nos termos da Lei da Ficha Limpa, e levá-lo à prisão, nos termos de posição firmada no STF em fevereiro de 2016.
A declaração de Gleisi nega a essência da República. Nega o Estado Democrático de Direito. Chantageia a democracia. É uma afirmação no sentido de não se submeter o acusado ao império da lei. Como se dissesse: Lula é um ser que não pode ser preso jamais, é imune perenemente, quase como um deus, inalcançável pela lei.
Mas ainda há juízes no Brasil!
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*Doutor em direito pela USP, é promotor de Justiça em São Paulo - atua na Procuradoria de Justiça de Direitos Difusos e Coletivos -, idealizador e presidente do Instituto Não Aceito Corrupção
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