- O Globo
A evolução dos processos contra o ex-presidente Lula está demonstrando sua formidável resiliência política, e como acertou na estratégia de manter a disputa jurídica sem abrir mão de sua candidatura presidencial. Ele entende com profundidade o espírito de nosso sistema político-jurídico.
No caso do Lula, a estratégia já foi a de simplesmente se livrar da cadeia, e agora já se vislumbra uma tentativa, incipiente, mas clara, de tentar superar a Ficha Limpa e conseguir chegar à urna eletrônica em outubro.
A Lei de Ficha Limpa existe desde 2010 e é muito clara: quem é condenado em segunda instância fica inelegível. A formalização dessa inelegibilidade é que depende do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), mais adiante. Mas, de qualquer maneira, Lula não pode se candidatar, o PT normalmente não deveria nem indicá-lo para registro como candidato do partido.
Vai indicar, vai criar um fato político, o TSE vai recusar, eles vão tentar um recurso ao Supremo, que não está previsto na legislação. O único recurso existente é no Superior Tribunal de Justiça (STJ), que a defesa dele tem que fazer agora, assim que se encerrar o processo de recursos no TRF-4.
A única maneira de Lula recuperar a condição de ser elegível é o STJ anular a decisão do TRF-4, descobrindo uma ilegalidade formal durante o julgamento, o que é muito difícil de acontecer. Caso contrário, o recurso contra a condenação e a inelegibilidade será negado.
Mas os defensores de Lula, ao dizer que o processo do TRF-4 ainda não terminou e que, portanto, sem o trânsito em julgado, Lula ainda é elegível, querem levar a questão eleitoral para o campo penal, porque tentam mudar também a legislação eleitoral, assim como estão conseguindo alterar a jurisprudência sobre prisão em segunda instância.
Misturar as duas situações pode ser uma boa saída para a defesa de Lula, alegando que, se a condenação em segunda instância deixou de ser o final de um processo penal, não pode ser decisiva para uma candidatura eleitoral. Podem alegar até que, enquanto Lula não for preso, o transito em julgado não existe.
A Lei da Ficha Limpa, que torna inelegível por oito anos o candidato que tiver mandato cassado, renunciar para evitar a cassação ou for condenado em segunda instância, nasceu de uma iniciativa popular com cerca de 1,6 milhão de assinaturas antes de chegar ao Congresso.
Muito antes de a jurisprudência do Supremo mudar para a condenação em segunda instância, a Lei da Ficha Limpa já previa que um condenado por órgão colegiado não teria condições de se candidatar. E, desde a sua idealização, provocou polêmicas.
Ontem, uma liminar do ministro Dias Toffoli anulou uma das primeiras decisões da Ficha Limpa, a que impedia o ex-senador Demóstenes Torres de participar da política até 2027, oito anos depois do término de seu mandato, pois foi cassado pelo Senado por relações espúrias com o bicheiro Carlinhos Cachoeira.
Acontece que parte do processo foi anulada pelo próprio STF, cuja Segunda Turma concedeu um habeas corpus invalidando as interceptações telefônicas relacionadas ao caso nas operações Vegas e Monte Carlo, e as provas delas derivadas.
Caberia ao Tribunal de Justiça do estado de Goiás avaliar se há motivos para o prosseguimento do processo com base em outras provas. Como ainda não houve uma decisão, Demóstenes Torres alegou que corria o risco de não poder se candidatar agora em 2018, o que justificou a liminar do ministro Toffoli.
Os procuradores de Curitiba viram nessa decisão um indicativo do que está por vir. “Para quem sabe ler, pingo é letra”, comentaram. Como a Lei da Ficha Limpa não prevê recurso ao STF, essa estratégia pode ser utilizada pela defesa do ex-presidente, e é aí que se combinam os dois casos, o eleitoral e o criminal.
Com o habeas corpus que deverá ganhar no dia 4 e, mesmo depois, se o plenário do Supremo conseguir forçar a presidente Cármen Lúcia a colocar em julgamento as Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs) contrárias à prisão em segunda instância que defendem a volta do trânsito em julgado para a decretação da prisão, a defesa de Lula pode alegar que a Lei de Ficha Limpa, ao definir a segunda instância como balizadora da punição eleitoral, já era inconstitucional à época em que foi promulgada, e volta a ser inconstitucional com a mudança da jurisprudência do STF.
Nunca é demais lembrar que o ministro Gilmar Mendes, cuja alteração de voto anunciada provocará a mudança da jurisprudência, já criticou a Lei da Ficha Limpa, dizendo que sua redação parece ter sido feita por uma pessoa embriagada, tais são as incongruências nela contidas.
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