O Estado de S. Paulo
Polarização se repetirá se revisão do regime presidencial e do voto proporcional não obtiver apoio popular e empenho do Legislativo
Desde 2013, vem se acumulando a frustração
entre os brasileiros com a resposta das elites dirigentes a suas demandas
vitais – trabalho, meios de subsistência, moradia, saúde, transporte e, mais do
que tudo, o direito a ser tratado com dignidade pelas autoridades públicas. As
mesmas queixas têm-se repetido ao longo dos anos seguintes, sublinhando a
relativa cegueira das elites a respeito da insatisfação popular.
Em todo o mundo, a incúria do poder público
redundou numa enraizada desconfiança dos cidadãos com relação a seus
representantes. A falta de confiança gerou perdas de legitimidade do sistema
representativo, no pressuposto de que a democracia dá, aos representantes
eleitos por voto popular, o direito de legislar em seu nome.
Em diferentes camadas da sociedade, sobretudo naquelas mais vulneráveis à instabilidade econômica e aos eventos adversos – como as catástrofes naturais, as guerras e as pandemias –, os cidadãos passaram a duvidar da legitimidade do mandato popular por eles concedido. As elites dirigentes vêm sendo acusadas de não respeitar os interesses e valores dos seus eleitores, não cumprir as leis que eles mesmos votam, fraudar a legalidade em benefício próprio e não retribuir aos cidadãos o mínimo do que lhes é devido.
Os eleitores se dão conta da barreira que
se ergue entre eles e seus representantes, que depende, nas democracias
representativas, do regime de governo e da legislação eleitoral. Legislações
eleitorais majoritárias (distritais) tendem a diminuir a quantidade de partidos
relevantes e a formar maiorias legislativas mais compatíveis com o eleitorado
do chefe do Executivo, o que propicia maior estabilidade e capacidade de implementar
políticas públicas.
Legislações eleitorais proporcionais, por
seu lado, tendem a aumentar a quantidade de partidos, favorecendo a
representação no Legislativo de pequenas minorias e dificultando, assim, a
formação de maiorias estáveis, compatíveis com o eleitorado do chefe do
Executivo. Neste caso, o Executivo precisa formar maiorias ocasionais para
implementar suas políticas públicas, sendo forçado a negociar alterações
oportunistas e a engolir legislações incompatíveis com a agenda por ele
proposta a seus eleitores. O efeito final são governos instáveis, regularmente
surpreendidos por pautas-bomba e incapazes de manter uma gestão coerente e de
revogar privilégios e agendas retrógradas.
É fácil culpar o eleitor por todas as
mazelas do sistema político, evocando o corriqueiro argumento de que “cada povo
tem o governo que merece”. Mas é injusto e incorreto esquecer que o cidadão
vota de mãos atadas porque não sabe a quem seu voto irá beneficiar, uma vez que
seu percurso até a diplomação de um eleito se faz segundo as regras eleitorais,
e não segundo sua decisão.
Por uma razão simples: dadas as regras da
legislação eleitoral, apenas entre 15% e 20% dos candidatos eleitos contaram
exclusivamente com votos recebidos nominalmente, e os restantes 85% a 80% foram
destinados a outros candidatos de seu partido (até a eleição de 2020, teriam
sido destinados a candidatos de qualquer partido de sua coligação). O eleitor
não sabe quem elegeu e se o eleito sabe quem são os seus eleitores.
A capacidade governativa do chefe do
Executivo é limitada pelas concessões a serem feitas a maiorias ocasionais e
diante de emendas oportunistas, geralmente incompatíveis com sua agenda. Com
isso, frustra as expectativas do eleitorado. Ademais, cria-se um solo fértil
para o surgimento de lideranças demagógicas e aventureiras que, quanto mais
radicalizam, mais se tornam capazes de manipular a insatisfação popular.
Duas são as consequências mais relevantes
dessa combinação entre o regime presidencialista e o sistema proporcional de
lista aberta, que a tornam incompatível com o caráter representativo de nossa
democracia. Em primeiro lugar, se não sabemos quem nos representa, como podemos
aceitar que o mandato de nossos representantes seja legítimo? E, se nossos
representantes não sabem a quem representam, como aceitar que seu mandato seja
democrático?
Em segundo lugar, se a polarização se torna
a regra, e não a exceção, a essência da democracia, que é o direito de escolher
livremente quem melhor representa minhas ideias e meus interesses, é gravemente
travestida numa escolha entre candidatos a quem menos rejeitamos.
Embora a polarização seja resultado de um
conluio entre candidaturas que se empenham em negar a liberdade de escolha do
eleitor, ela não seria possível se o sistema eleitoral não a tornasse viável.
Portanto, ela se repetirá a cada quatro anos se uma revisão do regime
presidencial e do voto proporcional não obtiver o apoio popular e o empenho do
Legislativo.
Projetos de lei e de emenda constitucional
sobre o tema estão em andamento no Congresso, alguns de minha autoria, em ambas
as Casas. A pressão da sociedade civil em prol dessa reforma poderia se
manifestar recusando-se a contribuir para as candidaturas polarizadas.
*Senador (PSDB-SP)
Um comentário:
Eu sempre achei estranho os votos de um candidato do legislativo poder eleger outros menos votado.
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