Nobel de Economia diz que o Brasil tem muito a ensinar ao mundo e pode se desenvolver com justiça social
Thiago Bethônico / Folha de
S. Paulo
Vencedor do Nobel
de Economia em 1998, o pensador indiano Amartya Sen prefere se conter
sobre as discussões econômicas. Segundo ele, o tema já recebe atenção demais
—"praticamente o tempo todo"—, e há questões mais importantes, como a
liberdade e as pessoas.
Em entrevista à Folha, Sen afirma
estar preocupado com ameaças à vida humana em função da intolerância política,
que se espalha no mundo. "Há muitas coisas acontecendo que são
perturbadoras. Se elas são ou não economicamente perturbadoras é uma questão
secundária."
O pensador indiano, que ganhou renome por
seus estudos sobre a fome e por defender um desenvolvimento com
liberdade, respeito aos indivíduos e bem-estar social, diz estar acompanhando a
realidade brasileira até certo ponto.
Segundo ele, o Brasil tem muito a ensinar
ao resto do mundo e, assim como qualquer país, tem a capacidade de crescer
enquanto combate desigualdades.
"Justiça social não é uma fórmula
abstrata. A justiça social é uma forma em que podemos ajudar uns aos outros, em
que os ganhos que as pessoas obtêm podem ser compartilhados com outras
pessoas", diz.
Sen publicou recentemente seu livro de
memórias, lançado no Brasil pela Companhia das Letras com o título "Uma
Casa no Mundo". Nele, o economista detalha como suas experiências pessoais
influenciaram seu trabalho em prol da melhoria da condição humana.
A entrevista foi feita por videochamada,
antes do segundo turno das eleições do Brasil:
No início do livro, o sr. fala sobre a situação na Birmânia [atual Mianmar] e aproveita para refletir sobre a intolerância política que vem ocorrendo em todo o mundo. O sr. acha que a intolerância política e regimes autoritários podem representar uma ameaça ao desenvolvimento econômico justo?
Eu não sei quanto ao desenvolvimento
econômico. Certamente é uma ameaça às nossas vidas. A economia é muito
enfatizada com frequência. Nem tudo precisa ser julgado por seu sucesso ou
fracasso econômico.
Acho que nossas vidas estão seriamente
afetadas agora, seja pensando no que está acontecendo na
Ucrânia, no que talvez esteja
acontecendo na China, ou no que está acontecendo dentro dos limites do
subcontinente indiano também. Há muitas coisas acontecendo que são
perturbadoras. Se elas são ou não economicamente perturbadoras é uma questão
secundária.
O sr. fala sobre a relação entre democracia e a economia de bem-estar. Quão importante é a democracia se quisermos realmente construir um modelo econômico que aborde a justiça social?
A democracia é muito importante porque não poderíamos ouvir uns
aos outros sem democracia. Não poderíamos prestar atenção ao que as diferentes
pessoas em um país ou em diferentes países estão querendo.
A ausência de democracia, que infelizmente
temos hoje em grande medida em muitas partes do mundo, nos deixa em silêncio
uns com os outros. Não articulado, não aberto à conversa. Acho que isso poderia
ser um fracasso radical da vida humana. Eu iria nessa direção. A questão do
fracasso econômico me parece secundária.
Mas, quando falamos de modelos econômicos, o que deveria estar no centro de um bom modelo?
Você está voltando para a
economia [risos]. Acho que o modelo econômico pode assumir muitas formas
diferentes. O principal é até que ponto há justiça, até que ponto há
oportunidade para diferentes pessoas participarem de um trabalho econômico que
envolva todos nós. A cooperação econômica é certamente importante.
A razão pela qual estou sendo um pouco
contido em relação ao lado econômico é que o lado econômico recebe muita
atenção o tempo todo. Todo mundo está falando de economia.
Disseram-me que os Republicanos vencerão a
eleição e derrotarão os Democratas
nos EUA. Por quê? Nos dizem que é porque os Republicanos têm uma economia
melhor. O tempo todo, há um foco enorme em economia. Às vezes faz sentido, mas
muitas vezes não.
O sr. tem acompanhado a situação do Brasil? Como vê o momento atual do país?
Até certo ponto, sim, porque o Brasil é
uma parte muito grande do mundo. Também tem sido um país muito importante, cuja
experiência foi importante.
Tem sido significativamente grande em
entender como lidar com, digamos, os desempregados, como lidar com o problema
do analfabetismo, problema da saúde e atenção médica.
Esses são grandes problemas, sejam eles no
Brasil, nos Estados Unidos, na Índia ou na China. São questões inescapavelmente
importantes.
O sr. ainda acredita que o Brasil pode se desenvolver com justiça social?
Sim, acho que qualquer país pode se
desenvolver com justiça social. Justiça social não é uma fórmula abstrata. A
justiça social é uma forma em que podemos ajudar uns aos outros, em que os ganhos
que as pessoas obtêm podem ser compartilhados com outras pessoas. Então, sim, a
justiça social pode ser uma característica essencial do desenvolvimento em
qualquer país do mundo.
O Brasil é um país com raízes escravistas profundas. Como combater a desigualdade em suas dimensões econômica e simbólica?
Não estou certo de que ir para o lado simbólico seja
extremamente produtivo.
Acho que o Brasil teve uma história de
escravidão em que bons estudos foram escritos indicando como a escravidão foi
eliminada, como isso aconteceu, e como essa remoção de uma desigualdade básica
ajuda os diferentes grupos de pessoas, pobres e ricos, a compartilharem seus
esforços para construir uma estrutura econômica boa, sólida e forte.
Acho que, em grande medida, o Brasil tem tido
sucesso nisso e, portanto, é algo com o qual o mundo pode aprender com o
Brasil, assim como o Brasil também pode aprender com o que aconteceu em outras
partes do mundo. Acho que há um pouco de compreensão um do outro, o que é
central, mas o Brasil tem mais a ensinar, assim como aprender com o resto do
mundo.
O que seria a coisa mais importante para aprender no Brasil com o resto do mundo? [Risos].
Não respondo a perguntas
do tipo "o que é mais importante". Muitas coisas são importantes e
não devem ser negligenciadas. Ao dizer apenas isso é importante ou aquilo não
é, acabamos gerando uma divisão, o que não ajuda muito na compreensão da
sociedade humana e de como as pessoas interagem umas com as outras.
O sr. tem um trabalho importante sobre a fome, e o Brasil é um exemplo de país que produz muito alimento, mas ainda convive com a fome. Isso soa contraditório, como explicar essa situação?
Bem, você sabe que o Brasil é um país de muito sucesso, em
muitos aspectos. O seu desenvolvimento econômico tem sido forte há algumas
décadas. Mas, junto com esse sucesso, é possível que muitas pessoas não tenham
meios de subsistência, e boa subsistência. Quando isso acontece, você pode ter
privação e até fome.
Isso pode ser evitado?
Sim, mas temos que
ver o que faz com que as pessoas sejam privadas, e como podemos reduzir a
privação e transformar isso em uma sociedade bem compartilhada.
Acho que o Brasil teve algumas boas
experiências, e temos motivos para apreciar o que o Brasil tem feito. O Brasil
não está sozinho nisso, houve conquistas em outros países também.
O sr. acha que programas de transferência de renda do governo são uma forma de resolver esse problema?
Depende de
quão bem ele é organizado. A transferência de renda tem um propósito,
principalmente o de mover a renda dos relativamente ricos para os relativamente
pobres.
Muitas vezes, há um argumento muito forte
para isso porque há muitas pessoas pobres, mesmo em um país que seja bastante
rico. Quando isso acontece, temos que ver como essas transferências podem ser
realizadas com mais eficiência e como evitar as desigualdades que podem ser
contraproducentes para a sociedade em geral.
Nem toda transferência é um sucesso, mas
existem transferências econômicas bem-sucedidas.
Um programa de transferência de renda projetado para grupos específicos seria melhor do que um programa projetado para todos? É possível entender se o melhor modelo é o universal ou o específico?
Acho que a universalidade é uma preocupação, mas compartilhar
é uma questão maior. Compartilhar é um valor que tem sido valorizado pela
humanidade ao longo dos séculos.
A ideia é que podemos fazer isso um pelo
outro e, quando isso acontece, poderia haver um benefício que se estenda a
todos e não apenas a algumas pessoas.
Diria que, sim, acho que compartilhar é uma
preocupação que as pessoas devem enfatizar. Eu sou um grande crente da cultura
de compartilhamento, mesmo que o compartilhamento possa assumir formas
diferentes.
Como o sr. vê a discussão ambiental e quão importante é isso quando falamos de justiça social e combate às desigualdades? Acha que isso está sendo bem abordado hoje?
Para cada sistema em que
podemos pensar, tende a haver outro sistema que evita as deficiências e
enfatiza os sucessos. Todo sistema pode ser melhorado de alguma forma? Sim, em
geral. Acho que houve sucessos na performance em diferentes países do mundo.
Tendo a ser bastante otimista no geral. Não
porque eu ache que tudo será um sucesso, mas nós podemos obter sucesso de uma
situação que parece bastante sem esperança.
Acho muito importante não perder nossa
capacidade de aprender com as diferentes experiências da sociedade. O Brasil
sempre será um exemplo importante com o qual o mundo aprenderia.
O sr. está acompanhando a corrida eleitoral
brasileira? Tem um favorito?
Não. Eu obviamente tendo a focar um pouco
mais naquelas pessoas que se preocupam com a equidade, com a justiça, e isso
tende a me aproximar das preocupações que Lula tinha. Por outro lado, há
problemas de ambos os lados, e devemos tomar nota disso.
De modo geral, se há um grupo de pessoas no país muito mais preocupado com a desigualdade, com a injustiça, isso tende a chamar minha atenção mais do que outro grupo.
*Amartya Sen, 89. Nascido em Santiniketan, atual Bangladesh, em 1933, recebeu o Nobel de Economia em 1998 por seu trabalho sobre a economia do bem-estar social. Professor da Universidade Harvard, é autor de diversos livros, incluindo "Desenvolvimento Como Liberdade" e "A Ideia de Justiça", ambos publicados pela Companhia das Letras.
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