terça-feira, 7 de fevereiro de 2023

Luiz Gonzaga Belluzzo** - Tempos difíceis*

Valor Econômico

É irrestrita a presunção a respeito das virtudes dos mercados na condução das economias ao nirvana do racionalismo

Ao assumir o cargo de secretário do Tesouro do governo conservador, David Cameron recebeu de seu antecessor trabalhista, Liam Byrne, um recado curto e grosso: “Meu caro secretário, sinto informar que não há dinheiro”.

A mensagem é simples: se não há dinheiro, corte seus gastos. O neuronavirus tem revelado enorme potencial de letalidade intelectual, ademais de revelar singular capacidade na escolha das vítimas. Os testes confirmam a preferência pelos neurônios do pensamento econômico dominante.

A opinião pública tem sido submetida a um insidioso processo de contaminação. Os especialistas e os comentaristas da mídia repetem, incansáveis, os mantras da austeridade. Ao definir o que estava “errado” e recomendar os remédios, a narrativa busca seletivamente escolher algumas dimensões da economia para imputar a responsabilidade do ocorrido.

Os adeptos da austeridade fiscal e monetária atribuem a David Ricardo a ideia da ineficácia das políticas anticíclicas: os agentes racionais, aqueles que conhecem a estrutura da economia e sua evolução provável, antecipam o aumento de impostos no futuro para cobrir o déficit incorrido agora. Isso resultaria em maiores taxas de inflação, subida das taxas de juro, expansão da dívida pública e necessidade de maiores impostos no futuro.

Na dita Ciência Econômica que prevalece em nossos dias, é geral e irrestrita a presunção a respeito das virtudes do mercados, empenhados em conduzir as economias e as sociedades ao nirvana do naturalismo, racionalismo, individualismo e equilíbrio.

Essa visão da economia padece das certezas do personagem de Charles Dickens na obra-prima “Tempos Difíceis”. “Sr. Thomas Gradgrind. Um homem de realidades. Um homem de fatos e cálculos. Um homem que trabalha de acordo com o princípio de que dois mais dois são quatro, e nada mais, e não pode ser persuadido a permitir nada mais. Sr. Thomas Gradgrind - peremptoriamente, Thomas - Thomas Gradgrind. Com uma régua e uma balança, e a tabuada sempre no bolso, senhor, pronto para pesar e medir qualquer parcela da natureza humana, e dizer o resultado exato. É uma mera questão de números, um caso de simples aritmética”.

As tentativas de estabelecer relações de causalidade em economia, mediante o uso dos necessários procedimentos estatísticos, sobretudo na análise de séries longas, estão sujeitas a muitas restrições de método e de concepção acerca das relações que determinam os movimentos da economia como um todo.

Tais limitações foram apontadas por Keynes em sua crítica ao texto “Statistical Testing of Business Cycles”, do economista holandês Jon Tinbergen, publicado pela Liga das Nações em 1939. Ao tratar das flutuações do investimento, Tinbergen atribui a queda do investimento às flutuações dos lucros. Caem os lucros, definham os investimentos. Keynes pergunta: e se as flutuações dos lucros fossem dependentes das flutuações do investimento, “como, de fato, acontece”?

Vou fazer um reparo ao maior economista do século XX. “Acontece” é a conclusão de um processo complexo. O que “acontece” depende do que “faz acontecer”. Depende, portanto, das hipóteses teóricas que estabelecem a hierarquia das relações que sustenta o movimento do todo.

Keynes encontrou confirmação no desempenho das economias centrais durante os assim chamados 30 anos gloriosos do imediato pós-Guerra. Esse período foi marcado por virtuosa e estável relação entre gasto fiscal, endividamento público e privado e taxas de crescimento. Esse arranjo favoreceu o crescimento dos lucros e dos salários reais, em consonância com os ganhos de produtividade, elevando as receitas fiscais dos governos e estimulando o investimento das empresas.

Os níveis de endividamento do setor privado e do setor público, como proporção do PIB, evoluíram satisfatoriamente, porque as taxas de crescimento elevadas da renda das famílias, dos lucros das empresas e das receitas fiscais dos governos permitiam resultados positivos nos balanços patrimoniais de empresas, famílias e governos.

Keynes nos encaminha ao economista e pensador Joseph Schumpeter e suas divagações a respeito da Visão que constitui o preâmbulo intelectual incontornável da Análise.

“À mistura de percepções que antecedem as Análises chamaremos de Visão ou Intuição do pesquisador. Na prática, é claro, quase nunca começamos do zero porque o ato pré-analítico da Visão não é inteiramente nosso. Começamos a partir do trabalho de nossos antecessores ou contemporâneos ou então a partir das ideias que flutuam ao nosso redor na mente pública. Neste caso, nossa visão também conterá pelo menos alguns dos resultados de análises científicas anteriores. No entanto, este composto ainda é dado a nós e existe antes de começarmos o trabalho científico nós mesmos”.

As concepções ossificadas deixam de examinar o conjunto de relações que estruturam a economia do capitalismo como uma organização econômica, social e política singular, singular porque histórica. Isso significa que essas relações se reproduzem num movimento incessante de diferenciação e autotransformação no interior de sua estrutura. Não há determinismo nem indeterminação: o capitalismo se transforma no processo de reprodução de suas estruturas. A historicidade do capitalismo é a antítese do historicismo vulgar.

Jurgen Habermas sugere que, além de estarem submetidas à confirmação empírica (ou à rejeição), as teorias da sociedade devem estar sujeitas à demonstração de que são “reflexivamente aceitáveis”. A investigação deve compreender não apenas as instituições e práticas sociais, mas também incluir as convicções que os agentes têm sobre a sua própria sociedade - investigar não apenas a realidade social, mas os saberes que se debruçam sobre ela. Uma teoria social é uma teoria a respeito das convicções dos agentes sobre a sua sociedade, sendo ela mesma uma dessas convicções. Os assim chamados cientistas sociais, sobretudo os economistas, costumam descuidar dos fundamentos cognitivos implícitos em seus procedimentos.

* (Homenagem a Charles Dickens)

**Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp e professor emérito da Universidade Federal de Goiás.

 

3 comentários:

Anônimo disse...

Os mercados conduziriam as economias e as sociedades ao progresso e desenvolvimento econômico e social, mas são cegos e insensíveis aos pobres, miseráveis e a quem não possa consumir seus produtos.

marcos disse...

O título é perfeito, pois se Beluzzo se sente à vontade para voltar a escrever não pode haver prova melhor.

MAM

ADEMAR AMANCIO disse...

Não entendi bulhufas,mas é lindo.