O Globo
Entre 2010 e 2022, a variação do voto no PT
nos municípios não oscila mais que quatro pontos percentuais
Acaba de sair pela editora HarperCollins o
livro “Biografia do abismo”, escrito pelo cientista político Felipe Nunes e
pelo jornalista Thomas Traumann. O livro é a mais importante contribuição para
os estudos sobre polarização política no Brasil e leitura obrigatória para quem
quer pensar os desafios políticos atuais. Seu principal trunfo está em fazer
uso de abundante evidência empírica produzida entre 2021 e 2022 em 27 rodadas
de pesquisas nacionais da consultoria Quaest, cofundada por Nunes.
Polarização política pode significar pelo menos três coisas diferentes. No passado, o conceito era quase exclusivamente usado para se referir à concentração dos votos em dois grupos — como nas situações em que, num sistema político com muitos partidos, o voto se concentrava em apenas dois. Era apenas a polarização do voto. No final dos anos 1990 e no início dos anos 2000, o termo passou também a ser usado para se referir à ampliação da divergência de opinião na sociedade civil, situação em que o apoio ou a rejeição a certas políticas vai afastando os cidadãos. Essa é a polarização ideológica.
Por fim, nos últimos anos, consagrou-se um
terceiro sentido do conceito, em referência à hostilidade entre quem adota
identidades políticas adversárias — o desgosto que conservadores e
progressistas ou bolsonaristas e lulistas sentem um pelo outro. Essa é a
polarização afetiva. O livro traz muitas evidências de que passamos por um
período de polarização política em todos os três sentidos consagrados.
Nunes e Traumann mostram que, apesar de o
padrão de voto para presidente no Brasil parecer, à primeira vista, oscilante e
confuso, ele está bem estruturado e, pelo menos desde 2006, consolidado. Quando
olhamos para os partidos políticos, o voto muda a cada eleição presidencial. Se
entendermos, porém, que o PT organiza o sistema político-partidário e
separarmos os votos entre os dados ao PT e a antagonistas do PT, veremos que há
muito pouca variação nos estados e nos municípios entre os ciclos eleitorais. É
impressionante. Entre 2010 e 2022, a variação do voto no PT nos municípios não
oscila mais que quatro pontos percentuais entre uma eleição e outra e, na
maioria dos intervalos, é de apenas dois pontos. Como apontam os autores, daria
para prever quem venceria as eleições de 2022 em cada município, com alguma
certeza, apenas olhando para os dados de 2018, 2014 e 2010. Há, sem sombra de
dúvida, uma polarização bem consolidada do voto entre PT e anti-PT.
O livro também demonstra que, quando
comparamos a opinião dos eleitores de Bolsonaro e de Lula,
o contraste é grande, sobretudo nos temas de costumes. Nos Estados Unidos,
esse contraste grande só aparece quando se olha para o subgrupo dos eleitores
identificados com os partidos (republicanos e democratas). Nunes e Traumann
mostram, porém, contrastes expressivos na grande massa de eleitores
brasileiros. Lulistas e bolsonaristas diferem bastante no apoio à união entre
pessoas do mesmo sexo (80% e 42%, respectivamente), à pena de morte (39% e 60%)
e ao porte de armas (17% e 58%), entre outros temas morais. O contraste é menor
ou inexistente em temas econômicos como papel do Estado na economia, Previdência ou
privatizações. Há polarização ideológica de massa, e ela está concentrada nos
temas das guerras culturais.
Por fim, e muito mais preocupante, o livro
apresenta evidências desconcertantes de que enfrentamos um período de acirrada
polarização afetiva, que ameaça a convivência democrática. Uma pergunta
investiga se o entrevistado ficaria feliz ou infeliz se o filho ou a filha se
casasse com um integrante do grupo adversário (medida de polarização afetiva
consagrada nos estudos eleitorais nos Estados Unidos): 43% dos lulistas e 28%
dos bolsonaristas responderam que ficariam infelizes se o filho ou filha se
casasse com alguém do outro grupo. Há outras evidências: 37% dos eleitores de
Lula e 34% dos eleitores de Bolsonaro acham que votar no candidato adversário é
inaceitável; 15% dos bolsonaristas e 16% dos lulistas deixariam de ouvir música
de um cantor ou cantora que deu apoio ao outro candidato. No total, um em cada
seis brasileiros (17%) reconhece ter rompido relações familiares ou de amizade
em razão da política. É um nível incrivelmente alto de intolerância.
Fiquei muito impressionado com as evidências
que o livro apresenta da intensidade da polarização política no Brasil. Mas não
fui completamente convencido pelas explicações que traz para ela.
Os autores adotam a visão de alguns
cientistas políticos americanos, segundo a qual a polarização atual é fruto do
enrijecimento de identidades partidárias que se “calcificaram”. No estágio
atual da polarização, argumentam, essa identidade partidária (no caso
brasileiro, identidade partidária e antipartidária, de petistas e antipetistas)
tem tamanha força que a aliança com o grupo político não é abalada por
evidências contrárias, gera intolerância política e nos empurra para relações
sociais politicamente homogêneas.
A valer essa explicação, a origem do problema é eleitoral e “transbordou” para as relações sociais. Permaneço cético com relação à leitura que parte da política eleitoral e contamina a sociedade. Há fenômenos como as guerras culturais que nasceram na sociedade civil e só depois se ligaram às dinâmicas eleitorais. Seja como for, é um livro que nos faz refletir.
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