O Estado de S. Paulo
A gestão que chegou ao poder prometendo ‘resolver’ a questão com uma retórica obsessiva de lei e ordem contribuiu para um agravamento sem precedentes da situação do crime e da violência no País
A segurança pública voltou a ocupar posição
de destaque entre as maiores preocupações dos brasileiros. A despeito da
redução dos homicídios no País desde 2018, a situação permanece muito grave.
São evidentes os sinais de enfraquecimento do Estado de Direito em nossa
sociedade, com o concomitante fortalecimento do crime organizado. Crescentes
formas de domínio territorial por facções e milícias tornaram-se lugares
comuns. A situação da Amazônia suscita preocupação especial, constatando-se a
conexão entre redes criminosas mais amplas, que envolvem desde tráfico de
drogas, trabalho análogo à escravidão, exploração sexual e invasão de terras
indígenas até crimes ambientais como exploração ilegal de madeira e minérios,
tráfico ilegal de animais e pesca predatória.
Este é o contexto herdado pelo governo Lula, que tem sido instado a retomar o protagonismo na coordenação de uma estratégia nacional de redução da violência e do crime. Não é casual o destaque alcançado pelo ministro da Justiça, Flávio Dino, que, a despeito das controvérsias, se notabilizou pela capacidade de tomada de decisões em situações críticas. Gerenciou as inúmeras crises da segurança pública que eclodiram no decorrer do ano com firmeza e autoridade. Adotou medidas polêmicas, como a utilização das Forças Armadas no Rio de Janeiro via Garantia da Lei e da Ordem (GLO), e anunciou ações genéricas para o enfrentamento do crime organizado.
Tais limitações não desqualificam este
primeiro ano do governo Lula na questão da segurança pública, a despeito da
percepção em contrário de parte expressiva dos brasileiros. Na verdade, o ano
de 2023 caracteriza-se por inúmeros episódios de violência que resultam do
legado descivilizatório do governo Bolsonaro nesta área. As crises atuais da
segurança pública não podem ser compreendidas sem destacar o peso desse legado.
Ao assumir o cargo, em 2019, Jair Bolsonaro tinha condições institucionais
bastante favoráveis para a implementação de avanços na política nacional de
segurança pública. O traço central do seu governo, contudo, foi a incapacidade
de formulação e implementação de planos de ações de curto e, muito menos, de
médio e longo prazos de controle da criminalidade, seja por déficit cognitivo e
organizacional, seja por pura falta de vontade política.
Evidenciou-se nítido retrocesso na atuação da
União no âmbito da segurança pública, uma vez que todos os governos que o
antecederam apresentaram algum tipo de atuação mais consistente nessa área. O
enfrentamento do crime organizado foi sumariamente ignorado durante o governo
Bolsonaro. Houve, por exemplo, notória fragilização das agências federais de
controle e fiscalização na Amazônia, favorecendo o fortalecimento das redes
criminosas na região.
A flexibilização do Estatuto do Desarmamento,
iniciativa central da gestão Bolsonaro na segurança pública, contrariou todas
as evidências científicas disponíveis e gerou efeitos perversos cumulativos,
desde a sua implementação. As facilidades geradas para a aquisição de armas e
munições pelos Colecionadores, Atiradores desportivos e Caçadores (CACs)
produziram o efeito previsível e indesejável de favorecer a construção de
arsenais privados por organizações criminosas as mais diversas.
Não bastasse isso, no governo Bolsonaro a
letalidade policial atingiu os maiores patamares da história recente do País.
Entre 2019 e 2022, a média anual foi de 6.300 mortes decorrentes de
intervenções policiais em todo o País. No governo Temer, essa média ficou no
patamar de 5.200 mortes; e no segundo governo Dilma, a média foi de 2.900
mortes. Ademais, o discurso da mais alta autoridade da República legitimou,
inúmeras vezes, o uso da violência como conduta válida e desejável para
enfrentar a criminalidade, favorecendo, nos planos simbólico e cultural, o
agravamento do fenômeno.
Não deixa de ser irônico concluir que a
gestão bolsonarista, que chegou ao poder prometendo “resolver” a complexa
questão da segurança com uma retórica obsessiva de lei e ordem, tenha
contribuído tanto, de formas direta e indireta, para um agravamento sem
precedentes da situação do crime e da violência no País. A máxima que resume
seu governo na segurança pública é mais armas e nada mais.
É sobre esta terra arrasada que os setores democráticos e progressistas, muitos dos quais integrantes do atual governo, devem concentrar imediatamente seus esforços. A construção e a implementação de um plano nacional de redução da criminalidade violenta devem estar no centro da agenda de prioridades do País. Combinar o imediato e o estratégico, de forma eficiente e com presença da sociedade civil, coordenar, articular e fomentar as ações de governos estaduais e municipais e das polícias e convocar à participação o Poder Judiciário, o Ministério Público e o Poder Legislativo, em todos os níveis. É o mínimo que se espera para que a barbárie bolsonarista seja superada.
*Cientistas sociais, são, respectivamente, professor da PUC-MG e da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
Um comentário:
Muito bom o texto, mas 1 ano se passou e o governo Lula MUITO POUCO fez em termos de segurança pública! Vai fazer muito mais nos próximos 3 anos??
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