O Globo
A polarização da sociedade brasileira se
refletiu na tragédia do Rio Grande do Sul desde a busca por responsáveis pelos
alagamentos
São exatos dois minutos de não diálogo que
sintetizam nossa era. Em meio a uma tragédia de proporções bíblicas, um
ministro entra em contato com o prefeito de uma cidade atingida e faz questão
de filmar a ligação, colocada em viva-voz. Só que o gesto não é unilateral. Do
outro lado da linha, o prefeito repete a mesma cena: ao receber a ligação de um
ministro de Estado que poderia auxiliá-lo, coloca no viva-voz e filma toda a
conversa.
Os dois não se escutam, e a solução da crise
humanitária na cidade é apenas o pretexto para a ligação. O papel de ambos
naquele teatro é proferir frases e reações lacradoras, gerando conteúdo para
animar sua turba de apoiadores — e detratores — nas redes sociais.
O prefeito de Farroupilha é Fabiano Feltrin, empresário e cover de Elvis Presley que se filiou em março ao PL, num evento que contou com a presença de Jair Bolsonaro. O ministro, claro, é Paulo Pimenta, da Secretaria de Comunicação do governo. Ontem Lula o escolheu para assumir o Ministério Extraordinário de Apoio à Reconstrução do Rio Grande do Sul.
Enquanto publicamente o presidente e o
governador Eduardo Leite exibem
relação republicana nas ações para superar a tragédia, a máquina de destruição
de reputações segue a todo vapor logo abaixo da linha d’água. Ela não encontra
barreiras ideológicas nem geográficas, mira políticos, jornalistas, servidores
públicos civis e militares, até voluntários que auxiliam quem perdeu tudo.
Pesquisa Quaest divulgada nesta semana
retrata outra face desse mesmo fosso em que nos metemos. Nela, 55% dizem que
Lula não merece mais uma chance como presidente, mas 47% estão dispostos a
votar nele em 2026 — ao menos 2% acham que ele não merece um novo mandato, mas
podem votar nele caso a alternativa seja pior. Todos os quatro nomes com apoio
de mais de 30% dos eleitores — Lula, Bolsonaro, a ex-primeira-dama Michelle e o
ministro Fernando
Haddad — são rejeitados por metade da população.
A polarização da sociedade brasileira se
refletiu na tragédia do Rio Grande do Sul desde a busca por responsáveis pelos
alagamentos — provocados, antes de mais nada, porque choveu em 17 dias 40% do
esperado para todo o ano — até a patrulha sobre os motivos que levavam
apoiadores do campo político oposto a estar mobilizados ajudando as vítimas.
O papel de coordenador da ajuda federal na
tragédia obrigará Pimenta a despir-se da farda de general da propaganda para
assumir as vestes de diplomata que deverá intermediar interesses do estado e
dos muitos municípios — boa parte deles governados por prefeitos de oposição —
que participarão da reconstrução. Em vez de atacar quem questiona o governo, o
ministro, que durante a gestão Bolsonaro chegou a chamar o atentado sofrido
pelo ex-presidente de “fakeada”, terá de baixar as armas.
A guerra por protagonismo ficou evidente na
semana passada no drama vivido por Caramelo, o cavalo que se equilibrava sobre
um telhado em Canoas. As primeiras imagens do animal surgiram na quarta-feira à
tarde. A primeira-dama Janja Lula da Silva amanheceu no dia seguinte alardeando
nas redes sociais a mobilização do Exército para o salvamento.
Nas horas que seguiram, as Forças Armadas
exibiram ao vivo a mobilização de militares, caminhões e helicópteros para a
operação. No entanto, minutos após partirem para a missão, a TV passou a exibir
um pequeno grupo de bombeiros se aproximando do cavalo. Eles o colocaram num
dos botes e navegaram até terra firme. Na corrida por Caramelo, o Corpo de
Bombeiros de São Paulo chegou na frente. Coube ao secretário de Segurança Guilherme
Derrite, bolsonarista da Rota que se orgulhava de “tirar vagabundo de
circulação”, levantar o troféu nas redes.
Não muito longe de onde o cavalo foi salvo,
dois outros cavalos, que ainda não haviam sido batizados por influencers, também tentavam
sobreviver, com água até o pescoço, dentro de uma casa inundada. Quando a
equipe de resgate chegou ao local, horas depois de Caramelo ser salvo, os dois
estavam mortos. Nas redes sociais de Janja e Derrite, nem um story.
Nenhum comentário:
Postar um comentário