quinta-feira, 31 de outubro de 2024

Cartilha para eleger Tarcísio - Conrado Hübner Mendes

Folha de S. Paulo

Meios, modos e eufemismos na promoção de um extremista à Presidência

Domingo passado, o governador Tarcísio de Freitas, após votar, convocou entrevista coletiva na TV. Não sozinho, mas ao lado de seu candidato a prefeito. Ocasião estranha para interação com a imprensa. Faltavam horas para o fechamento das urnas e não havia fato excepcional que pedisse, naquele minuto específico, uma coletiva.

Uma jornalista de cartilha perguntou: "O que aconteceu em relação ao PCC?" Tarcísio respondeu: "Teve o ‘salve’. Houve interceptação de conversas de presídios por parte de organização criminosa orientando determinadas pessoas a votar em determinado candidato". Outra voz emenda: "Qual era o candidato?" Tarcísio bateu: "Boulos".

O que fazer com essa declaração, que jornalistas de cartilha consideram informação? Publique-se sem apuração antes mesmo de as urnas fecharem, pois temos direito a voto "consciente e informado". Manchete: "Tarcísio diz que PCC pediu voto em Boulos". Se estiver inseguro, a cartilha sugere adjetivo imunizador: "Suposta ordem do PCC pedindo voto em Boulos", "três supostos bilhetes". Assim resolve o suposto risco.

Difundir desinformação com potencial de afetar normalidade da eleição gera cassação de mandato e inelegibilidade, já entendeu a Justiça Eleitoral. Aconteceu com o ex-deputado Fernando Francischini e com Jair Bolsonaro, punidos. Pablo Marçal, no primeiro turno, e Tarcísio de Freitas, no segundo, fizeram o mesmo. Salvo engano. Com agravante: em cima da hora, para que a desinformação fosse irreversível. Supostamente.

Operação jornalística de redução de danos entrou em campo. Maestra no jornalismo de cartilha, comentarista de TV admite que Tarcísio jogou sujo. Mas recorre à lógica: "Tarcísio não convocou entrevista pra isso. Foi falta de malícia, de sacada política. Ele já sabia que o Nunes ia vencer." Logo, pode ter sido sujo, mas não um crime, uma interferência que virou o jogo.

Em sua coluna, a comentarista de cartilha examina a plausibilidade do "salve" do PCC a Boulos: "Esse apoio faz até sentido, por questão objetiva: a direita, com Tarcísio no governo, Nunes na prefeitura e seu vice, coronel aposentado da PM, tem um discurso muito mais radical contra o crime organizado, enquanto a esquerda, como Boulos e sua vice, Marta Suplicy (PT), defende combate ao crime com respeito a direitos humanos." Mas ressalva: "Isso não significa vínculo nenhum."

Profissionais da linguística e da semiótica teriam muito a dizer sobre trecho tão exemplar. Uma riqueza de técnicas discursivas e disfarces, símbolos e preconceitos. A preferência do PCC por "direitos humanos", logo esquerda, logo Boulos, foi só mais uma grande sacada. O PT entre parênteses, único partido citado no raciocínio, foi um ato falho.

Vale elucidar a cartilha jornalística para ajudar a eleger Tarcísio. Bastante gente vai continuar a obedecê-la nos próximos dois anos. A lista completa de seus mandamentos virá em outra coluna.

A cartilha começa pela lição de linguagem. Jamais chame Tarcísio de extremista. Apesar dos vínculos com Bolsonaro, de abraçar estratégias de Bolsonaro, de professar valores e políticas públicas de Bolsonaro, de ter sido dos maiores frequentadores das lives de humor negacionista de Bolsonaro, não cospe no cercadinho como Bolsonaro.

Um moderado, esse o adjetivo primeiro.

 

4 comentários:

ADEMAR AMANCIO disse...

Não entendi o desespero do governador,eram favas contadas a reeleição de Nunes,o que fará um Tarcísio candidato a presidente numa disputa apertada?

Anônimo disse...

Magnífica coluna! "Vale elucidar a cartilha jornalística para ajudar a eleger Tarcísio. Bastante gente vai continuar a obedecê-la nos próximos 2 anos." O crime eleitoral do governador será julgado e punido?

Anônimo disse...

Não resisto, tenho que repetir a conclusão do colunista:
"Jamais chame Tarcísio de extremista. Apesar dos vínculos com Bolsonaro, de abraçar estratégias de Bolsonaro, de professar valores e políticas públicas de Bolsonaro, de ter sido dos maiores frequentadores das lives de humor negacionista de Bolsonaro, não cospe no cercadinho como Bolsonaro."

Anônimo disse...

Tarcísio não poderia ser um bolsonarista moderado? Ou será que não existem bolsonaristas moderados?