Correio Braziliense
Autor de livro sobre os 40 anos da
redemocratização afirma que movimento em favor dos golpistas do 8 de janeiro
tem como finalidade trazer Bolsonaro de volta às urnas. E que imediatismo
prejudica consensos democráticos
A poucas quadras do Hospital das Clínicas da
Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, na Rua Capote Valente,
quase esquina com Teodoro Sampaio, no bairro Pinheiros, morava o historiador Alberto Aggio. Em 21 de abril de 1985, ele
decidiu fazer uma caminhada dramática. Pôs a filha de seis anos sobre os ombros
e seguiu a pé até a Avenida Rebouças, a menos de 2 km de casa. Pai e filha iam
acompanhar o traslado do corpo do presidente eleito Tancredo Neves pela capital
paulista. Para Aggio, a incerteza que se instaurou com a morte do político
mineiro, personagem central na redemocratização, este foi o primeiro momento em
que a abertura política esteve ameaçada desde o declínio do regime militar. Mas
não foi o último.
Alberto Aggio lançou, em Brasília, o livro A construção da democracia no Brasil (1985-2025): mudanças, metamorfoses, transformismos. Na publicação, Alberto faz uma síntese de seus estudos sobre o Brasil e a América Latina contemporâneos e organiza sua interpretação sobre os 40 anos da redemocratização do país. Neste sábado, Aggio participa de evento, no Panteão da República, em comemoração ao restabelecimento de um governo civil após 21 anos de ditadura militar.
Em entrevista ao Correio Braziliense, o
historiador afirma que a sociedade brasileira precisa entender melhor o tempo
da democracia, incompatível com imediatismos e soluções fáceis. “Queremos a
democracia, mas, por ela ser complexa, e até mesmo uma novidade para nós, para
a sociedade, não compreendemos muito bem a sua dinâmica, os seus tempos, os
seus atores”, diz.
Qual é a perspectiva do livro?
Esse livro é uma síntese dos meus estudos
sobre o Brasil e a América Latina contemporânea. Recolhe um conjunto de estudos
e organiza uma interpretação sobre os 40 anos da democracia ou da
redemocratização do país. Ele não é propriamente uma tese de mestrado ou
doutorado com um tema restrito. É bem demarcado, com uma visão teórica, mas
busca fazer uma interpretação e um debate com a historiografia, a ciência
política, que se voltou para estudar esse processo todo de fim do regime
militar, início da transição, a transição se completando com a Constituição de
88, as primeiras eleições e daí para frente, com os problemas que o Brasil
enfrentou, o período do Fernando Henrique Cardoso, que aí se estabelece a
reeleição, logo depois o período petista de Lula, que é o período mais
abrangente de uma única força política nesses 40 anos, e vai até o impeachment
de Dilma Rousseff, em 2016. E depois retorna em 2022 com um interregno governo
Temer e depois Bolsonaro.
A redemocratização foi ameaçada em algum
momento?
Quando Tancredo se prepara para a posse e
adoece, esse é um momento muito delicado. Parecia que poderia haver um
retrocesso no processo de transição que estava avançando para estabelecer a
democracia no Brasil. Se nós pudermos considerar as atitudes do general que
comandava o Exército em Brasília, que era um general muito estridente e que
mobilizou o fechamento de Brasília para o processo de eleição do Colégio
Eleitoral (Newton Cruz), a vitória do Tancredo e a organização da posse, eu
acho que foi um momento muito tenso. Essa tensão acabou finalizando com a posse
interina de José Sarney, por conta da doença do Tancredo Neves, às cirurgias a
que ele começou se submeter e à morte em 21 de abril. Até aí, nós temos um
momento que é quase uma suspensão. Ninguém sabia precisamente se a democracia
ia vingar ou não. O outro momento viria décadas depois, com a vitória do Jair
Bolsonaro, em 2018. Esse é o momento mais ameaçador.
O governo Bolsonaro foi mais perigoso do que
os impeachments de Collor e Dilma?
Bolsonaro foi uma crise muito maior. Nem com
o impeachment de Collor, nem com o impeachment da Dilma, a democracia esteve
ameaçada. Foram dois processos seguramente difíceis, complicados, cheios de
tensão, mas não creio que se possam catalogá-los como ameaça à democracia. O
governo Bolsonaro, sim. Ele não se configura no sentido de impor mudanças
efetivas que destruíram o caminho de democracia que nós temos. Bolsonaro não
consegue fazer isso. O que ele consegue é reorganizar as forças políticas
contrárias à democracia, estabelecer um clima de tensão e de ameaça, que é
maior do que a sensação de ameaça.
Essa sensação se tornou algo concreto?
A sensação de ameaça se estabelece e cresce
até a tentativa de golpe de 8 de janeiro. Aí sim essa ameaça quase se configura
numa ruptura institucional. Se o 8 de janeiro tivesse vingado, seria um momento
de reversão do processo que começou nos anos 1970, mas se configura em 15 de
março de 1985, por conta da posse do primeiro governo civil, que nós chamamos,
na época, de primeiro governo de transição.
O país precisa de mais forças políticas
democráticas, para além da figura do Lula e do PT, para derrotar a extrema
direita nas urnas e afastar ameaças à democracia?
A presença do PT e de Lula na democracia
brasileira é uma questão complexa. O PT é, ao mesmo tempo, uma solução e um
grande problema. Evidentemente, se nós pensarmos que há uma polarização,
trata-se de uma polarização entre Lula e Bolsonaro. Essa polarização estanca as
possibilidades do Brasil de avançar na democracia, na economia, no projeto de
inserção na economia global, que está cada vez mais complicado com Trump, com
Putin, com guerra da Ucrânia, com a China. Então, em um momento como esse, a
polarização entre PT e Bolsonaro, Lula e Bolsonaro é bastante negativa, porque
isso estreita o debate político, o debate de projetos para o Brasil.
A polarização já poderia ter sido superada no
Brasil?
Em um contexto interno, com o Bolsonaro
inelegível, nós poderíamos ter decantado esse processo. Se efetivamente
Bolsonaro não puder se candidatar, espero que a gente possa ter um leque muito
maior de possibilidades. Mas ainda estamos longe de 2026. No meu ponto de
vista, as forças políticas devem se reorganizar, porque a gente não sabe
precisamente o que irá ocorrer.
O que pensa da anistia aos réus do 8 de
Janeiro?
A anistia só se pode pleitear quando os
processos estiverem julgados e condenados. Então, é possível que juridicamente
se possa pensar em anistia. No momento, acho absurdo propor anistia porque,
efetivamente, aquelas pessoas participaram – não importa se conscientemente ou
não — de um processo que daria um resultado. Imaginavam que aquela invasão dos
prédios públicos no centro da República desencadearia uma ruptura da
institucionalidade. E que, a partir daí, os militares ocupariam o poder. Eu não
sou a favor da anistia. Acho que ela está muito mal colocada pelos próprios
defensores. No fundo, eles escondem que estão pedindo anistia para Bolsonaro.
Há uma diferença entre a anistia de 1979 e
essa em discussão?
Temos aqui uma maneira de trabalhar um tema
importante da civilização, que é o perdão. A anistia configura perdão. Nós
vivemos isso no passado e, no passado, a anistia foi um tema colocado para toda
a sociedade brasileira, no sentido de reconciliação dos brasileiros. A anistia
que estão pedindo agora não tem esse caráter de reconciliação dos brasileiros,
como a anistia que se pedia nos anos 1970 contra o regime autoritário. Isso
aconteceu naquele momento e resultou na Lei de Anistia. É uma lei complexa, complicada,
problemática, mas favoreceu a transição política de forma pacífica, do regime
militar à construção democrática. Espero que esses processos sejam julgados o
mais rápido possível, para que fique muito claro que a sociedade brasileira e
suas instituições defendem a democracia que nós construímos há 40 anos.
Por que o golpe não vingou?
Não vingou por duas razões. Primeiro porque
os comandos militares não deram aval para a execução do golpe de Estado. Os
comandos militares, não dando aval, bloquearam os setores militares que eram
minoritários e que poderiam desencadear a ruptura. Se fizessem isso, a situação
iria para um confronto de segmentos das Forças Armadas, que seria deplorável,
uma tragédia para o país. Os comandos militares reconheceram que o país vive a
democracia e precisa continuar dentro da democracia, inclusive com o respaldo das
Forças Armadas. Por outro lado, havia também um uma divisão do ponto de vista
político. Muita gente já escreveu sobre isso, inclusive o colunista do Correio
Luiz Carlos Azedo, apontando claramente, coisa que eu cito no livro, que a
divisão existente no núcleo político do Bolsonaro se encaminhava muito mais
para evitar essa ruptura do que para realizá-la.
Havia resistência?
Sim. Os principais líderes do Centrão, que
dava sustentação política a Bolsonaro, não queriam a ruptura institucional. É
claro que o comando militar foi decisivo, evitando um encaminhamento do golpe,
mas a base aliada do governo Bolsonaro não estava inteiramente favorável.
O perfil de Bolsonaro também dificultava a
concretização de um golpe?
Penso que sim. Veja, estamos falando de um
golpe dado por um presidente como Bolsonaro, um homem de facção política.
Bolsonaro nunca foi um homem de unidade política. Na história brasileira, toda
vez que isso foi tentado, culminou em derrota. Enfraqueceu o país, o Estado
brasileiro, nossa ideia de nação, compartilhada por todos os brasileiros. Tenho
a impressão de que Bolsonaro e suas hostes mais radicais, que pretenderam
encaminhar o golpe 8 de janeiro de 2023, erraram profundamente na análise que
fizeram das circunstâncias do país.
Vivemos em uma democracia. Por que ainda é
importante falar dela?
Nossa democracia não nasceu de uma ruptura,
de uma revolução. A nossa democracia nasceu de um processo de transição
negociada, como foi na Espanha, depois da morte do Franco. Como foi no Chile,
depois da derrota de Pinochet no plebiscito de 1988. Temos aqui dois exemplos
de democracias que nascem de transições negociadas com segmentos do regime
anterior. Essa situação por si só é muito complexa. Nem mesmo algumas forças
políticas organizadas valorizaram o que foi feito. A redemocratização, na
verdade, foi uma operação política muito sofisticada com apoio popular. A
transição brasileira foi negociada, mas também foi uma transição com um apoio
popular. Como escreveu certa vez a economista Maria Conceição Tavares, o Brasil
agora não é mais o porto seguro das elites, mas também não é a Estação
Finlândia dos revolucionários.
Então, o que é o Brasil?
O Brasil é uma sociedade de massas buscando
construir a democracia. É um engano dizer que a nossa transição foi
conservadora. E mais, a nossa transição, diferentemente do Chile e da
Argentina, por exemplo, produziu uma nova ordem institucional, que foi a
Constituição de 1988. Nenhum desses países fez isso. Hoje o Chile está ainda
sob a sombra do pinochetismo. Claro que tudo foi reformulado do ponto de vista
legal, mas vimos na história recente do Chile toda a discussão para se produzir
uma nova Constituição e que no final redundou em fracasso, tanto de um lado,
quando a Constituição projetada era muito mais à esquerda, quanto de outro,
quando a Constituição projetada era mais de centro-direita, mais moderada.
Nenhum dos dois modelos a população aprovou.
Tivemos um processo bem-sucedido aqui?
Em 1988, nós conseguimos uma assembleia
constituinte, uma grande participação da sociedade discutindo diversos temas,
com uma grande organização profissional, conduzida pelo Dr. Ulysses, por vários
outros, respondendo aos anseios dos brasileiros. Os brasileiros gostam de
mudança, pensam sempre no novo. E o novo é substancialmente a democracia, a
participação, a equidade, o desenvolvimento, o progresso. A nossa democracia se
conectou a maior parte do tempo com esses temas.
E por que ela ainda continua sob ameaça?
Quando nós chegamos à democracia, o Brasil
tinha muitas ilusões em relação a ela. Percebeu-se depois que a democracia é
algo muito complexo, que exige muito dos atores políticos, da sociedade. Os
tempos da vida política democrática não são imediatistas, necessitam de
negociação e de construção de consensos. Quando chegamos à democracia, tudo era
para “já”. “Diretas Já”, isso era mais do uma expectativa, era uma ilusão do
que ela seria, e fomos percebendo que não era bem assim.
O imediatismo prejudica a democracia?
Tenho dúvidas se toda a sociedade compreende a complexidade de tudo isso. Por essa razão surgem os discursos antipolítica, de um sujeito que diz que vai resolver tudo no ato, retoma essa ideia do imediato. Nenhuma democracia consolidada do mundo é assim. Nós não desenvolvemos uma cultura política democrática. Acreditamos na democracia, queremos a democracia, mas, por ela ser complexa, e até mesmo uma novidade para nós, para a sociedade, não compreendemos muito bem a sua dinâmica, os seus tempos, os seus atores.
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