segunda-feira, 17 de março de 2025

“Anistia ao 8 de Janeiro não é reconciliação”, diz historiador Alberto Aggio

Correio Braziliense

Autor de livro sobre os 40 anos da redemocratização afirma que movimento em favor dos golpistas do 8 de janeiro tem como finalidade trazer Bolsonaro de volta às urnas. E que imediatismo prejudica consensos democráticos

A poucas quadras do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, na Rua Capote Valente, quase esquina com Teodoro Sampaio, no bairro Pinheiros, morava o historiador Alberto Aggio. Em 21 de abril de 1985, ele decidiu fazer uma caminhada dramática. Pôs a filha de seis anos sobre os ombros e seguiu a pé até a Avenida Rebouças, a menos de 2 km de casa. Pai e filha iam acompanhar o traslado do corpo do presidente eleito Tancredo Neves pela capital paulista. Para Aggio, a incerteza que se instaurou com a morte do político mineiro, personagem central na redemocratização, este foi o primeiro momento em que a abertura política esteve ameaçada desde o declínio do regime militar. Mas não foi o último.

Alberto Aggio lançou, em Brasília, o livro A construção da democracia no Brasil (1985-2025): mudanças, metamorfoses, transformismos. Na publicação, Alberto faz uma síntese de seus estudos sobre o Brasil e a América Latina contemporâneos e organiza sua interpretação sobre os 40 anos da redemocratização do país. Neste sábado, Aggio participa de evento, no Panteão da República, em comemoração ao restabelecimento de um governo civil após 21 anos de ditadura militar.

Em entrevista ao Correio Braziliense, o historiador afirma que a sociedade brasileira precisa entender melhor o tempo da democracia, incompatível com imediatismos e soluções fáceis. “Queremos a democracia, mas, por ela ser complexa, e até mesmo uma novidade para nós, para a sociedade, não compreendemos muito bem a sua dinâmica, os seus tempos, os seus atores”, diz.

Qual é a perspectiva do livro?

Esse livro é uma síntese dos meus estudos sobre o Brasil e a América Latina contemporânea. Recolhe um conjunto de estudos e organiza uma interpretação sobre os 40 anos da democracia ou da redemocratização do país. Ele não é propriamente uma tese de mestrado ou doutorado com um tema restrito. É bem demarcado, com uma visão teórica, mas busca fazer uma interpretação e um debate com a historiografia, a ciência política, que se voltou para estudar esse processo todo de fim do regime militar, início da transição, a transição se completando com a Constituição de 88, as primeiras eleições e daí para frente, com os problemas que o Brasil enfrentou, o período do Fernando Henrique Cardoso, que aí se estabelece a reeleição, logo depois o período petista de Lula, que é o período mais abrangente de uma única força política nesses 40 anos, e vai até o impeachment de Dilma Rousseff, em 2016. E depois retorna em 2022 com um interregno governo Temer e depois Bolsonaro.

A redemocratização foi ameaçada em algum momento?

Quando Tancredo se prepara para a posse e adoece, esse é um momento muito delicado. Parecia que poderia haver um retrocesso no processo de transição que estava avançando para estabelecer a democracia no Brasil. Se nós pudermos considerar as atitudes do general que comandava o Exército em Brasília, que era um general muito estridente e que mobilizou o fechamento de Brasília para o processo de eleição do Colégio Eleitoral (Newton Cruz), a vitória do Tancredo e a organização da posse, eu acho que foi um momento muito tenso. Essa tensão acabou finalizando com a posse interina de José Sarney, por conta da doença do Tancredo Neves, às cirurgias a que ele começou se submeter e à morte em 21 de abril. Até aí, nós temos um momento que é quase uma suspensão. Ninguém sabia precisamente se a democracia ia vingar ou não. O outro momento viria décadas depois, com a vitória do Jair Bolsonaro, em 2018. Esse é o momento mais ameaçador.

O governo Bolsonaro foi mais perigoso do que os impeachments de Collor e Dilma?

Bolsonaro foi uma crise muito maior. Nem com o impeachment de Collor, nem com o impeachment da Dilma, a democracia esteve ameaçada. Foram dois processos seguramente difíceis, complicados, cheios de tensão, mas não creio que se possam catalogá-los como ameaça à democracia. O governo Bolsonaro, sim. Ele não se configura no sentido de impor mudanças efetivas que destruíram o caminho de democracia que nós temos. Bolsonaro não consegue fazer isso. O que ele consegue é reorganizar as forças políticas contrárias à democracia, estabelecer um clima de tensão e de ameaça, que é maior do que a sensação de ameaça.

Essa sensação se tornou algo concreto?

A sensação de ameaça se estabelece e cresce até a tentativa de golpe de 8 de janeiro. Aí sim essa ameaça quase se configura numa ruptura institucional. Se o 8 de janeiro tivesse vingado, seria um momento de reversão do processo que começou nos anos 1970, mas se configura em 15 de março de 1985, por conta da posse do primeiro governo civil, que nós chamamos, na época, de primeiro governo de transição.

O país precisa de mais forças políticas democráticas, para além da figura do Lula e do PT, para derrotar a extrema direita nas urnas e afastar ameaças à democracia?

A presença do PT e de Lula na democracia brasileira é uma questão complexa. O PT é, ao mesmo tempo, uma solução e um grande problema. Evidentemente, se nós pensarmos que há uma polarização, trata-se de uma polarização entre Lula e Bolsonaro. Essa polarização estanca as possibilidades do Brasil de avançar na democracia, na economia, no projeto de inserção na economia global, que está cada vez mais complicado com Trump, com Putin, com guerra da Ucrânia, com a China. Então, em um momento como esse, a polarização entre PT e Bolsonaro, Lula e Bolsonaro é bastante negativa, porque isso estreita o debate político, o debate de projetos para o Brasil.

A polarização já poderia ter sido superada no Brasil?

Em um contexto interno, com o Bolsonaro inelegível, nós poderíamos ter decantado esse processo. Se efetivamente Bolsonaro não puder se candidatar, espero que a gente possa ter um leque muito maior de possibilidades. Mas ainda estamos longe de 2026. No meu ponto de vista, as forças políticas devem se reorganizar, porque a gente não sabe precisamente o que irá ocorrer.

O que pensa da anistia aos réus do 8 de Janeiro?

A anistia só se pode pleitear quando os processos estiverem julgados e condenados. Então, é possível que juridicamente se possa pensar em anistia. No momento, acho absurdo propor anistia porque, efetivamente, aquelas pessoas participaram – não importa se conscientemente ou não — de um processo que daria um resultado. Imaginavam que aquela invasão dos prédios públicos no centro da República desencadearia uma ruptura da institucionalidade. E que, a partir daí, os militares ocupariam o poder. Eu não sou a favor da anistia. Acho que ela está muito mal colocada pelos próprios defensores. No fundo, eles escondem que estão pedindo anistia para Bolsonaro.

Há uma diferença entre a anistia de 1979 e essa em discussão?

Temos aqui uma maneira de trabalhar um tema importante da civilização, que é o perdão. A anistia configura perdão. Nós vivemos isso no passado e, no passado, a anistia foi um tema colocado para toda a sociedade brasileira, no sentido de reconciliação dos brasileiros. A anistia que estão pedindo agora não tem esse caráter de reconciliação dos brasileiros, como a anistia que se pedia nos anos 1970 contra o regime autoritário. Isso aconteceu naquele momento e resultou na Lei de Anistia. É uma lei complexa, complicada, problemática, mas favoreceu a transição política de forma pacífica, do regime militar à construção democrática. Espero que esses processos sejam julgados o mais rápido possível, para que fique muito claro que a sociedade brasileira e suas instituições defendem a democracia que nós construímos há 40 anos.

Por que o golpe não vingou?

Não vingou por duas razões. Primeiro porque os comandos militares não deram aval para a execução do golpe de Estado. Os comandos militares, não dando aval, bloquearam os setores militares que eram minoritários e que poderiam desencadear a ruptura. Se fizessem isso, a situação iria para um confronto de segmentos das Forças Armadas, que seria deplorável, uma tragédia para o país. Os comandos militares reconheceram que o país vive a democracia e precisa continuar dentro da democracia, inclusive com o respaldo das Forças Armadas. Por outro lado, havia também um uma divisão do ponto de vista político. Muita gente já escreveu sobre isso, inclusive o colunista do Correio Luiz Carlos Azedo, apontando claramente, coisa que eu cito no livro, que a divisão existente no núcleo político do Bolsonaro se encaminhava muito mais para evitar essa ruptura do que para realizá-la.

Havia resistência?

Sim. Os principais líderes do Centrão, que dava sustentação política a Bolsonaro, não queriam a ruptura institucional. É claro que o comando militar foi decisivo, evitando um encaminhamento do golpe, mas a base aliada do governo Bolsonaro não estava inteiramente favorável.

O perfil de Bolsonaro também dificultava a concretização de um golpe?

Penso que sim. Veja, estamos falando de um golpe dado por um presidente como Bolsonaro, um homem de facção política. Bolsonaro nunca foi um homem de unidade política. Na história brasileira, toda vez que isso foi tentado, culminou em derrota. Enfraqueceu o país, o Estado brasileiro, nossa ideia de nação, compartilhada por todos os brasileiros. Tenho a impressão de que Bolsonaro e suas hostes mais radicais, que pretenderam encaminhar o golpe 8 de janeiro de 2023, erraram profundamente na análise que fizeram das circunstâncias do país.

Vivemos em uma democracia. Por que ainda é importante falar dela?

Nossa democracia não nasceu de uma ruptura, de uma revolução. A nossa democracia nasceu de um processo de transição negociada, como foi na Espanha, depois da morte do Franco. Como foi no Chile, depois da derrota de Pinochet no plebiscito de 1988. Temos aqui dois exemplos de democracias que nascem de transições negociadas com segmentos do regime anterior. Essa situação por si só é muito complexa. Nem mesmo algumas forças políticas organizadas valorizaram o que foi feito. A redemocratização, na verdade, foi uma operação política muito sofisticada com apoio popular. A transição brasileira foi negociada, mas também foi uma transição com um apoio popular. Como escreveu certa vez a economista Maria Conceição Tavares, o Brasil agora não é mais o porto seguro das elites, mas também não é a Estação Finlândia dos revolucionários.

Então, o que é o Brasil?

O Brasil é uma sociedade de massas buscando construir a democracia. É um engano dizer que a nossa transição foi conservadora. E mais, a nossa transição, diferentemente do Chile e da Argentina, por exemplo, produziu uma nova ordem institucional, que foi a Constituição de 1988. Nenhum desses países fez isso. Hoje o Chile está ainda sob a sombra do pinochetismo. Claro que tudo foi reformulado do ponto de vista legal, mas vimos na história recente do Chile toda a discussão para se produzir uma nova Constituição e que no final redundou em fracasso, tanto de um lado, quando a Constituição projetada era muito mais à esquerda, quanto de outro, quando a Constituição projetada era mais de centro-direita, mais moderada. Nenhum dos dois modelos a população aprovou.

Tivemos um processo bem-sucedido aqui?

Em 1988, nós conseguimos uma assembleia constituinte, uma grande participação da sociedade discutindo diversos temas, com uma grande organização profissional, conduzida pelo Dr. Ulysses, por vários outros, respondendo aos anseios dos brasileiros. Os brasileiros gostam de mudança, pensam sempre no novo. E o novo é substancialmente a democracia, a participação, a equidade, o desenvolvimento, o progresso. A nossa democracia se conectou a maior parte do tempo com esses temas.

E por que ela ainda continua sob ameaça?

Quando nós chegamos à democracia, o Brasil tinha muitas ilusões em relação a ela. Percebeu-se depois que a democracia é algo muito complexo, que exige muito dos atores políticos, da sociedade. Os tempos da vida política democrática não são imediatistas, necessitam de negociação e de construção de consensos. Quando chegamos à democracia, tudo era para “já”. “Diretas Já”, isso era mais do uma expectativa, era uma ilusão do que ela seria, e fomos percebendo que não era bem assim.

O imediatismo prejudica a democracia?

Tenho dúvidas se toda a sociedade compreende a complexidade de tudo isso. Por essa razão surgem os discursos antipolítica, de um sujeito que diz que vai resolver tudo no ato, retoma essa ideia do imediato. Nenhuma democracia consolidada do mundo é assim. Nós não desenvolvemos uma cultura política democrática. Acreditamos na democracia, queremos a democracia, mas, por ela ser complexa, e até mesmo uma novidade para nós, para a sociedade, não compreendemos muito bem a sua dinâmica, os seus tempos, os seus atores.

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