segunda-feira, 17 de março de 2025

O Canadá está em busca de si mesmo – Demétrio Magnoli

O Globo

Os socos de Trump miram precisamente o baço friável da identidade canadense

O Canadá nasceu no berço de uma derrota histórica dos revolucionários americanos: a Batalha de Quebec de 1775. O Exército Continental formado pelas Treze Colônias invadiu o Quebec com o objetivo de conquistar a província governada pelos britânicos e de convencer a maioria francófona a aderir à Revolução Americana. A derrota assinalou a separação geopolítica definitiva entre Estados Unidos e Canadá. Ser canadense tornou-se igual a ser leal à Coroa britânica — ou não ser americano.

— O Canadá é tudo o que os Estados Unidos não são — eis a típica réplica canadense a indagações sobre identidade nacional.

Não ser o outro aparece como motivo de orgulho: o país de um pluralismo gentil, ancorado sobre sistemas universais de saúde pública e educação, não teria motivos para invejar o vizinho mais poderoso. Contudo uma identidade negativa é algo singular — e, sobretudo, frágil. Os socos de Trump miram precisamente o baço friável da identidade canadense.

O governo de Ottawa já não interpreta como piada as referências ao então primeiro-ministro Trudeau como “governador do 51º estado”. Segundo Trudeau, por meio da guerra tarifária, Trump “quer ver o colapso completo da economia canadense, pois isso tornaria mais fácil anexar-nos”.

No início de fevereiro, desenrolaram-se duas conversas telefônicas entre Trump e Trudeau. Elas foram bem além do tema das tarifas. Trump sugeriu que os tratados de fronteiras entre os dois países carecem de validade e expressou seu desejo de rever os acordos sobre os quatro grandes lagos compartilhados. No Canadá, a forte reação às novas tarifas americanas deriva de uma mistura de temor e raiva: o que parecia troça agora é lido como ameaça existencial.

A nação soberana surgiu aos poucos, sem rupturas radicais. A Guerra Civil Americana (1861-65) e as tensões entre a maioria anglófona e a minoria francófona de Quebec secaram o impulso nacionalista, conservando a lealdade à Coroa britânica. O autogoverno veio apenas em 1867, na forma da Confederação Canadense. A plena soberania precisou aguardar até 1982, quando encerrou-se o poder do Parlamento britânico sobre o Canadá.

Aos canadenses falta uma guerra de independência, uma revolução republicana e até mesmo algo tão banal como um Grito do Ipiranga. Inexistem óbvios heróis caídos, mártires especiais, sagas trágicas.

Pierre Trudeau, pai de Justin, duas vezes primeiro-ministro entre 1968 e 1984, derrotou o secessionismo do Quebec e deflagrou as políticas multiculturais. Nele, encontram-se as sementes de um discurso de neutralidade e democracia cultural que sustentaria uma identidade pancanadense: a cola de tolerância capaz de gerar coerência entre anglófonos, francófonos, imigrantes e povos nativos.

Não foi suficiente — e os murros de Trump provocam uma busca. Forças canadenses combateram nas duas guerras mundiais. Na Batalha de Vimy Ridge, em 1917, as quatro divisões da Força Expedicionária Canadense operaram em conjunto pela primeira vez, derrotando os alemães e contribuindo para uma ofensiva franco-britânica. Nada muito especial, mas um marco nacional materializado por um monumento encravado no nordeste francês. Hoje, tentativas de esculpir um nacionalismo patriótico passam pela antiga batalha.

Alguma coisa profunda move-se na sociedade canadense. O Partido Liberal, do renunciante Trudeau, estava destinado à derrota nas próximas eleições gerais. A intervenção de Trump deslocou as pesquisas de opinião, descortinando uma janela ao agora primeiro-ministro Mark Carney, o novo líder dos liberais que exige “respeito” à soberania canadense. Pierre Poilievre, o “Trump canadense”, um conservador que despontava como vencedor, tenta recuperar seu favoritismo falando grosso contra o presidente americano. Doug Ford, premiê da província de Ontário, ordenou a retirada de bebidas americanas dos mercados e ameaça cortar o fornecimento de eletricidade a três estados dos Estados Unidos.

Num intervalo de poucas semanas, o Canadá encontrou um pátio de unidade. Sou eu porque não quero ser você. A plácida identidade nacional negativa converte-se em embrionário nacionalismo antiamericano. Obra de Trump.

 

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