O Globo
Os socos de Trump miram precisamente o baço
friável da identidade canadense
O Canadá nasceu no berço de uma derrota
histórica dos revolucionários americanos: a Batalha de Quebec de 1775. O
Exército Continental formado pelas Treze Colônias invadiu o Quebec com o
objetivo de conquistar a província governada pelos britânicos e de convencer a
maioria francófona a aderir à Revolução Americana. A derrota assinalou a
separação geopolítica definitiva entre Estados Unidos e
Canadá. Ser canadense tornou-se igual a ser leal à Coroa britânica — ou não ser
americano.
— O Canadá é tudo o que os Estados Unidos não são — eis a típica réplica canadense a indagações sobre identidade nacional.
Não ser o outro aparece como motivo de
orgulho: o país de um pluralismo gentil, ancorado sobre sistemas universais de
saúde pública e educação, não teria motivos para invejar o vizinho mais
poderoso. Contudo uma identidade negativa é algo singular — e, sobretudo,
frágil. Os socos de Trump miram precisamente o baço friável da identidade
canadense.
O governo de Ottawa já não interpreta como
piada as referências ao então primeiro-ministro Trudeau como “governador do 51º
estado”. Segundo Trudeau, por meio da guerra tarifária, Trump “quer ver o
colapso completo da economia canadense, pois isso tornaria mais fácil
anexar-nos”.
No início de fevereiro, desenrolaram-se duas
conversas telefônicas entre Trump e Trudeau. Elas foram bem além do tema das
tarifas. Trump sugeriu que os tratados de fronteiras entre os dois países
carecem de validade e expressou seu desejo de rever os acordos sobre os quatro
grandes lagos compartilhados. No Canadá, a forte reação às novas tarifas
americanas deriva de uma mistura de temor e raiva: o que parecia troça agora é
lido como ameaça existencial.
A nação soberana surgiu aos poucos, sem
rupturas radicais. A Guerra Civil Americana (1861-65) e as tensões entre a
maioria anglófona e a minoria francófona de Quebec secaram o impulso
nacionalista, conservando a lealdade à Coroa britânica. O autogoverno veio
apenas em 1867, na forma da Confederação Canadense. A plena soberania precisou
aguardar até 1982, quando encerrou-se o poder do Parlamento britânico sobre o
Canadá.
Aos canadenses falta uma guerra de
independência, uma revolução republicana e até mesmo algo tão banal como um
Grito do Ipiranga. Inexistem óbvios heróis caídos, mártires especiais, sagas
trágicas.
Pierre Trudeau, pai de Justin, duas vezes
primeiro-ministro entre 1968 e 1984, derrotou o secessionismo do Quebec e
deflagrou as políticas multiculturais. Nele, encontram-se as sementes de um
discurso de neutralidade e democracia cultural que sustentaria uma identidade
pancanadense: a cola de tolerância capaz de gerar coerência entre anglófonos,
francófonos, imigrantes e povos nativos.
Não foi suficiente — e os murros de Trump
provocam uma busca. Forças canadenses combateram nas duas guerras mundiais. Na
Batalha de Vimy Ridge, em 1917, as quatro divisões da Força Expedicionária
Canadense operaram em conjunto pela primeira vez, derrotando os alemães e
contribuindo para uma ofensiva franco-britânica. Nada muito especial, mas um
marco nacional materializado por um monumento encravado no nordeste francês.
Hoje, tentativas de esculpir um nacionalismo patriótico passam pela antiga
batalha.
Alguma coisa profunda move-se na sociedade
canadense. O Partido Liberal, do renunciante Trudeau, estava destinado à
derrota nas próximas eleições gerais. A intervenção de Trump deslocou as
pesquisas de opinião, descortinando uma janela ao agora primeiro-ministro Mark
Carney, o novo líder dos liberais que exige “respeito” à soberania canadense.
Pierre Poilievre, o “Trump canadense”, um conservador que despontava como
vencedor, tenta recuperar seu favoritismo falando grosso contra o presidente
americano. Doug Ford, premiê da província de Ontário, ordenou a retirada de
bebidas americanas dos mercados e ameaça cortar o fornecimento de eletricidade
a três estados dos Estados Unidos.
Num intervalo de poucas semanas, o Canadá
encontrou um pátio de unidade. Sou eu porque não quero ser você. A plácida
identidade nacional negativa converte-se em embrionário nacionalismo
antiamericano. Obra de Trump.
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