segunda-feira, 17 de março de 2025

Crise de alimentos vai além do preço – Fernando Gabeira

O Globo

Sistema mundial de alimentação, com suas complexas cadeias de suprimento, não é fácil de domar

Graças à divisão de trabalho doméstica, há muitos anos vou à feira uma vez por semana. Às vezes, comparo com as compras no exílio europeu. A manga era cara, era preciso ter um pequeno excedente para comprá-la. Agora, ao comprar manga no Brasil, constato que custa R$ 10 a unidade e percebo que os preços se aproximam.

Muita coisa mudou ao longo destas décadas no país, e, sinceramente, não acho correto culpar o governo. O sistema mundial de alimentação, com suas complexas cadeias de suprimento, não é fácil de domar, ainda mais por um só país, ainda que seja uma superpotência alimentar como o Brasil.

Lembro-me do nome de um restaurante onde comi algumas vezes no início do século: Food for Thought. Isso me estimula nos próximos meses a escrever alguns artigos e esquentar o tema nas eleições de 2026.

Na campanha de 2022, a temática esteve presente de alguma forma no discurso de Lula, que encaminhou uma aliança contra a fome, defendeu financiar a agricultura familiar e apresentou uma proposta popular de picanha para todos. Lula enfocou o consumo da carne pelo ângulo do prazer, associando-o a uma cervejinha. A verdade é que também é um tipo de proteína importante para a saúde.

Para produzir 1 quilo de carne, porém, é preciso também produzir 2 quilos de grãos. O consumo universal da carne traria imenso problema de mais áreas aráveis, inclusive as hoje disputadas para a produção de biocombustível.

No momento, discutimos principalmente preços. Mas eles podem ser apenas a face visível do problema. Antes de chegar a eles, é preciso também considerar três variáveis que impactam a produção: energia, clima e água.

Estamos ainda no início da transição energética. O petróleo tem ainda grande importância no transporte dos alimentos, na impulsão de máquinas e até mesmo nos fertilizantes. Seria importante discutir isso de uma perspectiva nacional, cobrar a rapidez da transição e buscar a autossuficiência em fertilizantes. A guerra na Ucrânia mostrou nossas lacunas. Temos potássio, e há uma produção interessante de fertilizantes naturais no sul de Minas.

As mudanças climáticas precisam ser abordadas com urgência. A safra do ano passado sofreu um baque por causa disso. É necessário preservar os rios voadores da Amazônia, combatendo queimadas e desmatamentos e, ao mesmo tempo, investir em pesquisas sobre a resistência das plantas ao calor.

A água é um elemento superdelicado. Alguns países deixam de produzir alimentos para não gastar seus recursos hídricos. A agricultura usa muita água. Mas não só ela. Quem visitar — como fiz algumas vezes — criações industriais de frango e carne de porco verá como consomem grandes quantidades de água. Na verdade, exportamos frangos e porcos, mas também milhões de litros de água de nossos rios, como o Uruguai.

Com uma transição energética lenta, intensas mudanças climáticas e crises hídricas em muitos pontos do planeta, não há muito espaço para alimentos baratos e abundantes.

Daqui para a frente, será preciso abordar alguns temas-chave, como segurança sanitária, e ir um pouco mais a fundo em certos dilemas. Um deles: há uma parte da humanidade com fome, outra mal alimentada, a julgar pela obesidade, pelo diabetes, pelas doenças cardíacas e por alguns tipos de câncer. A produção industrial baixou preços, mas trouxe gastos em áreas que não são dela, como a saúde.

Nesse horizonte de crise, alimento para pensar não pode faltar em nossa cabeça.


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