Valor Econômico
Se muitos estão cegos para os impactos do
extremismo, os dois últimos meses da loucura americana mostraram como é
perigoso ignorar seu real significado
Os piores pesadelos estão se realizando neste
início do governo Trump. Antes de sua posse, boa parcela do mercado financeiro,
empresários de toda parte e políticos brasileiros que se dizem moderados sem
conseguirem ter autonomia em relação a Bolsonaro acreditaram que o pragmatismo
venceria. Naturalizaram o extremismo, e o mundo vai passar pela tempestade
política mais terrível desde o nazismo. Para sairmos dessa desgraça, é preciso
entender a perversidade e o desastre contidos no modelo político e de políticas
públicas da extrema direita.
A extrema direita hoje abarca grupos de várias partes do mundo, crescendo na Europa, mas não tendo ainda vencido as eleições por lá, e está no poder na Hungria, na Argentina e nos EUA, como já esteve no Brasil. Há diferenças entre partidos e lideranças extremistas por conta de características locais - os imigrantes não são um tema no caso brasileiro, por exemplo. De todo modo, em todas essas experiências há uma característica central: uma liderança populista, carismática, iliberal e com um projeto autocrático. Seus seguidores e asseclas obedecem caninamente ao chefe.
Não há espaço para dissenso entre os
extremistas e os que têm a petulância de expressar uma pequena discordância são
tratados como inimigos e abandonados pelo chefe maior. Movimentos políticos que
não aceitam qualquer divergência são, por natureza, antidemocráticos, sejam de
direita ou de esquerda. Pior do que isso: se um grupo dominado por uma
liderança inconteste elimina o debate e a diferença entre seus membros, é bem
provável que cometa muitos erros e nunca aprenda com eles, aceitando como
autômatos todas as decisões e falas do líder extremista. Foi assim com
Bolsonaro no Brasil, e esse comportamento tem se repetido com Trump, pois os
republicanos e assessores presidenciais foram transformados em sujeitos sem voz
ou capacidade de reação.
A primeira característica do modo de fazer
política da extrema direita é uma liderança inconteste com seguidores
completamente fiéis e praticamente sem individualidade. Cabe ressaltar: são
milhares de apoiadores de primeira linha e milhões de votantes que seguem esse
rumo. Como angariam tamanho apoio? A explicação está na criação de inimigos
internos e externos que assustem o “homem comum”, alimentando ressentimentos e
ódios numa parcela grande da população que se vê derrotada frente à
modernização econômica e de costumes.
A criação desses “monstros” internos e
externos tem sido um dos grandes instrumentos da ascensão da extrema direita.
Imigrantes, China, diversidade, comunistas, intelectuais, feministas,
conhecimento científico e globalização são, para citar um conjunto relevante de
fantasmas, colocados no altar daquilo que deve ser cotidianamente combatido.
Cria-se um sentimento de luta diária e ininterrupta, um modelo bélico de se
fazer política, fortemente impulsionado por uma linguagem polarizadora nas
redes sociais. A cada dia, Trump ou Bolsonaro precisam derrotar e exterminar um
desses inimigos, usando algum tipo de “motosserra” contra eles.
O modelo beligerante está no coração de cada
um dos seguidores e é utilizado pela liderança extremista para enfraquecer a
democracia e criar uma “geopolítica dos escolhidos” - um novo “eixo do bem”
entre as nações. É exatamente isso que Trump está fazendo: enfraquecendo as
instituições e a sociedade civil americanas e só aceitando como parceiros na
ordem internacional os países que disserem amém às suas propostas.
É interessante notar como a extrema direita
funciona ao estilo de uma máfia, com um poderoso chefão, auxiliares que fazem o
trabalho sujo (um Musk ou um Pazuello) e utilizando a ameaça constante como
método de se fazer política. De forma milimétrica o cientista político Cláudio
Couto chamou esse modelo chantagista e mafioso de “extorsocracia”, a política
como extorsão dos outros, geralmente dos inimigos ou grupos que se quer
subjugar, mas por vezes também dos aliados, como Bolsonaro tem feito com os governadores
de direita que querem o seu apoio para uma futura disputa presidencial - ou
apoiam a anistia do chefe ou serão massacrados pelos bolsonaristas.
O resultado desse modo de se fazer política
da extrema direita é, na melhor das hipóteses, o enfraquecimento da democracia,
ou, na pior das possibilidades, a construção de uma autocracia iliberal. Esse é
o sonho de todo líder extremista contemporâneo, e talvez por isso todos eles
venerem o governante húngaro, Viktor Orbán, que chegou ao nirvana que almejam.
No íntimo, num raciocínio impensável para quem viu o Muro de Berlim cair, essas
lideranças ocidentais extremistas gostariam mesmo de ser Vladimir Putin, este
sim um chefe sem freios e poderoso.
O que deve ser dito em alto e bom som é que a
naturalização da extrema direita gera líderes autoritários e narcisistas, que
comandam uma parcela grande da população que os obedece caninamente, por meio
de um modelo bélico e mafioso (a “extorsocracia”) de governar países e destruir
os laços de confiança da ordem internacional, e cujo objetivo final é acabar
com a democracia liberal, numa espécie de revolução profunda e distópica contra
a ordem internacional criada pelo mundo ocidental no pós-guerra.
Passar o pano para tais lideranças e ideias
extremistas é uma forma de suicídio coletivo que parcela importante de
empresários, de gente do mercado financeiro, da mídia e até intelectuais têm
cometido nos últimos anos. Sempre lembro que é preferível ser Churchill, que
enfrentou com “sangue, suor e lágrimas” o nazismo, a Chamberlain, o
primeiro-ministro britânico que evitou o confronto com Hitler porque o mundo se
consertaria sozinho. Transportando esse raciocínio para o Brasil, ninguém sai
incólume do apoio ao ideário iliberal e autoritário de Bolsonaro, com sua
anistia que pretende apagar a tentativa de golpe de Estado. Como estão faltando
Churchills na política brasileira!
Se o modo de fazer política da extrema
direita é uma perversidade contra a democracia e o modelo ocidental do
pós-guerra, seu desastre deriva da forma como lida com as políticas públicas. É
preciso ressaltar que os extremistas atuais não são apenas autoritários, como
também são fortemente incompetentes, como estamos vendo na absurda guerra das
tarifas proposta por Trump, que vai desorganizar a ordem econômica
internacional e a própria economia americana.
A incompetência nas políticas públicas dos
extremistas inicia-se por sua visão negativa da ciência e dos especialistas.
Nos últimos anos e cotidianamente, os missionários da extrema direita espalham
fake news e ideias absurdas sobre o funcionamento do mundo e de suas principais
instituições. Quando chegam ao governo, precisam reproduzir esse modo de pensar
para manter a legitimidade de sua visão de mundo. O problema é que o
negacionismo em políticas públicas cobra um preço muito alto em termos de
desempenho governamental. Foi assim na pandemia de covid-19, tem sido do mesmo
modo na forma como Trump fracassa na economia. Isso para não falar do legado
trágico que vão deixar ao meio ambiente, com consequências futuras terríveis.
A extrema direita não só ignora a ciência
como ataca suas bases, especialmente a universidade e a burocracia formada por
especialistas. O ataque trumpista às principais instituições universitárias
americanas pode causar uma fuga de cérebros e a perda da principal vantagem dos
Estados Unidos no pós-guerra: sua superioridade no conhecimento científico e
tecnológico. Na mesma toada, a quase extinção do Departamento de Educação
revela um país que não conseguirá ter um projeto alvissareiro de futuro para
seus filhos e netos. Criar uma área para pretensamente melhorar a eficiência
governamental foi a maneira pela qual o trumpismo pretendeu evitar que a
técnica fosse uma barreira ao seu projeto megalomaníaco e autocrático.
Políticas públicas bem-sucedidas baseiam-se
em evidências, em gestão bem-organizada e em mecanismos de governança
colaborativa, a partir da qual o governo articula os diversos atores que
participam das questões coletivas. Tudo isso é o oposto do que o trumpismo e o
bolsonarismo seguem, o que leva seus governos a estratégias estéreis de
confronto político-social e à negação da ciência, redundando em desastres
governamentais. Os americanos terão mais inflação e/ou recessão, do mesmo modo
que as políticas bolsonaristas aumentaram a pobreza, pioraram a educação e
destruíram a máquina pública e o meio ambiente.
O padrão de política e políticas públicas da
extrema direita pode levar o mundo para o abismo, especialmente quando adotado
pela maior potência do mundo, com efeitos incalculáveis para cada parte do
planeta Terra. Trump é a combinação de autoritarismo com incompetência, e o
bolsonarismo é a reprodução disso na escala brasileira. Tentar retornar à
trilha bolsonarista ou apoiar-se nela para se chegar ao poder é colocar o
Brasil à beira do precipício. Se muitos estão cegos para os impactos do
extremismo, os dois últimos meses da loucura americana mostraram como é
perigoso ignorar seu real significado. Espero que nos lembremos disso nas
eleições de 2026.
*Fernando Abrucio, doutor em
ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas
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