O Globo
A falta de confiança pavimenta caminhos e
baliza estratégias
Existe um motivo para argentinos preferirem
guardar dinheiro dentro de nichos em paredes a depositar a poupança no banco;
para brasileiros tremerem ao menor sinal de inflação, ainda que os preços hoje
subam em um ano menos do que escalavam em uma semana no passado. Ou para países
emergentes pagarem a investidores taxas de juros infinitamente maiores e verem
reservas internacionais evaporar ao menor sinal de instabilidade. Desconfiança
é o sentimento que ajuda a compreender o comportamento de consumidores, famílias,
empresas, investidores e nações em reação aos traumas da História. Numa
economia global ferida pelo tarifaço intempestivo e inconsequente imposto por
Donald Trump, a falta de confiança pavimenta caminhos e baliza estratégias.
Ainda que o presidente americano, noutro rompante, recue de todas as sanções já anunciadas (ou temporariamente suspensas), a guinada terá deixado cicatrizes em seu próprio país. E no mundo. A variável desconfiança passou a integrar equações de análise de risco e planejamento de quem quer que se relacione com os Estados Unidos. Parceiros e desafetos sabem que Trump — e, por conseguinte, o país que preside — é capaz de rasgar acordos firmados, romper parcerias seculares. Não poderão desconsiderar o que é fato.
É o fator desconfiança, subjetivo, imaterial,
que torna tão grave, profundo, complexo o ambiente econômico neste 2025. Numa
cerimônia pública, na semana passada, o presidente do Banco Central, Gabriel
Galípolo, resumiu a perplexidade do momento:
— Todo mundo que estudou economia alguma vez
na vida achou que os índices de volatilidade e incerteza do Brasil pudessem
migrar para economias mais avançadas e, com o tempo, ficar mais parecidos. Eu
sempre achei que era porque a gente ia se aproximar deles, não o contrário.
Hoje o tema de incerteza e volatilidade parece estar um pouco mais espalhado no
mundo.
Significa dizer que características que
separavam, agora, irmanam mercados. Não é por acaso que, no intervalo de dez
dias, Bolsas de Valores, moedas, ativos, commodities experimentaram os piores e
os melhores momentos em meses, anos, décadas. Num só dia, a última
quarta-feira, o dólar no Brasil foi de R$ 5,99 a R$ 6,10; para, em seguida,
fechar a R$ 5,84. Depois que Trump anunciou a pausa de 90 dias na taxação
adicional a países, exceto China, o Índice Dow
Jones, da Bolsa de Nova York,
subiu 7,9%, maior alta desde 2020; e o Nasdaq, das empresas de inovação e
tecnologia, saltou 12%, melhor resultado num dia desde 2001. Em dois dias da
semana passada, depois que a China anunciou a primeira rodada de retaliação à
taxação dos Estados Unidos, o Dow Jones acumulou queda de 9,3%, e o Nasdaq
despencou 11,4%. O barril do petróleo já recuou entre US$ 10 e US$ 15 e flerta
com a barreira de US$ 60, nível de quatro anos atrás.
Afora a queda de braço entre Estados Unidos e
China, líder de audiência, blocos econômicos e países fazem conta, abrem
negociação, montam estratégias para se livrar, absorver ou devolver a
retaliação imposta por Trump. A União Europeia chegou a anunciar tarifa de 25%
sobre um conjunto de itens importados dos Estados Unidos; ontem, suspendeu as
medidas por 90 dias, prazo idêntico à vigência do recuo do presidente
americano. As tarifas adicionais foram suspensas temporariamente; continua
valendo a taxação de 10% a todos os países; a China está sobretaxada em 145%,
segundo a Casa Branca.
Enquanto autoridades, investidores,
economistas e analistas tentam adivinhar o porvir na inflação, na atividade
econômica, nas relações comerciais, consumidores e empresas se debruçam sobre
as decisões que moldarão o futuro. Há notícias de famílias americanas estocando
alimentos para fugir das remarcações, fantasma que assombrou gerações de
brasileiros que viveram a hiperinflação. O país já teve filas de carros em
postos de combustíveis na véspera de reajuste no preço da gasolina; a classe
média comprou freezers para congelar comida e, depois do Plano Real,
praticamente aposentou o eletrodoméstico. Institutos de pesquisa e o
próprio IBGE,
órgão oficial, detectaram mudanças nas cestas de consumo antes e depois da
estabilização. Com poder de compra restabelecido, gastou-se mais com iogurte,
frango, remédios, até dentadura. Quando a grana aperta, ovos substituem a
carne, ultraprocessados — mais baratos, nada saudáveis — tomam o lugar de
alimentos in natura.
Nos Estados Unidos, já tem gente preocupada
com as decisões microeconômicas — e como influenciarão o planejamento das
empresas e a economia como um todo. O país está no limiar de uma inédita
mudança de preços relativos, às vésperas de optar entre manter, reduzir ou
banir hábitos de consumo. O economista Justin Wolfers, da Universidade de
Michigan, no artigo “Americano, sua vida nunca mais será a mesma depois das
tarifas de Trump”, publicado no New York Times, foi quem primeiro alertou sobre
os riscos à espreita e suas consequências.
— Tarifas pequenas criam problemas pequenos.
Tarifas grandes criam problemas enormes.
Lembrou que um aumento substancial de tarifa
sobre o abacate importado do México pode levar à troca da guacamole real pela
fake nos cardápios; uma máquina de lavar ou um carro mais caros podem obrigar
uma família a manter por mais tempo os modelos antigos, menos eficientes no
funcionamento e no consumo de energia e combustível. Ele tratou dos Estados
Unidos, mas o raciocínio vale para qualquer lugar. Mudanças bruscas e profundas
geram desconfiança e mudam comportamentos. Não é só por um punhado de dólares —
ou milhões, ou bilhões. Em jogo estão traição entre nações amigas, saúde e
bem-estar da população, desempenho da economia, proteção ao meio ambiente e até
escalada da violência por xenofobia. O preço é alto para todo mundo. Em todo o
mundo.
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