sexta-feira, 11 de abril de 2025

A era da desconfiança – Flávia Oliveira

O Globo

A falta de confiança pavimenta caminhos e baliza estratégias

Existe um motivo para argentinos preferirem guardar dinheiro dentro de nichos em paredes a depositar a poupança no banco; para brasileiros tremerem ao menor sinal de inflação, ainda que os preços hoje subam em um ano menos do que escalavam em uma semana no passado. Ou para países emergentes pagarem a investidores taxas de juros infinitamente maiores e verem reservas internacionais evaporar ao menor sinal de instabilidade. Desconfiança é o sentimento que ajuda a compreender o comportamento de consumidores, famílias, empresas, investidores e nações em reação aos traumas da História. Numa economia global ferida pelo tarifaço intempestivo e inconsequente imposto por Donald Trump, a falta de confiança pavimenta caminhos e baliza estratégias.

Ainda que o presidente americano, noutro rompante, recue de todas as sanções já anunciadas (ou temporariamente suspensas), a guinada terá deixado cicatrizes em seu próprio país. E no mundo. A variável desconfiança passou a integrar equações de análise de risco e planejamento de quem quer que se relacione com os Estados Unidos. Parceiros e desafetos sabem que Trump — e, por conseguinte, o país que preside — é capaz de rasgar acordos firmados, romper parcerias seculares. Não poderão desconsiderar o que é fato.

É o fator desconfiança, subjetivo, imaterial, que torna tão grave, profundo, complexo o ambiente econômico neste 2025. Numa cerimônia pública, na semana passada, o presidente do Banco Central, Gabriel Galípolo, resumiu a perplexidade do momento:

— Todo mundo que estudou economia alguma vez na vida achou que os índices de volatilidade e incerteza do Brasil pudessem migrar para economias mais avançadas e, com o tempo, ficar mais parecidos. Eu sempre achei que era porque a gente ia se aproximar deles, não o contrário. Hoje o tema de incerteza e volatilidade parece estar um pouco mais espalhado no mundo.

Significa dizer que características que separavam, agora, irmanam mercados. Não é por acaso que, no intervalo de dez dias, Bolsas de Valores, moedas, ativos, commodities experimentaram os piores e os melhores momentos em meses, anos, décadas. Num só dia, a última quarta-feira, o dólar no Brasil foi de R$ 5,99 a R$ 6,10; para, em seguida, fechar a R$ 5,84. Depois que Trump anunciou a pausa de 90 dias na taxação adicional a países, exceto China, o Índice Dow Jones, da Bolsa de Nova York, subiu 7,9%, maior alta desde 2020; e o Nasdaq, das empresas de inovação e tecnologia, saltou 12%, melhor resultado num dia desde 2001. Em dois dias da semana passada, depois que a China anunciou a primeira rodada de retaliação à taxação dos Estados Unidos, o Dow Jones acumulou queda de 9,3%, e o Nasdaq despencou 11,4%. O barril do petróleo já recuou entre US$ 10 e US$ 15 e flerta com a barreira de US$ 60, nível de quatro anos atrás.

Afora a queda de braço entre Estados Unidos e China, líder de audiência, blocos econômicos e países fazem conta, abrem negociação, montam estratégias para se livrar, absorver ou devolver a retaliação imposta por Trump. A União Europeia chegou a anunciar tarifa de 25% sobre um conjunto de itens importados dos Estados Unidos; ontem, suspendeu as medidas por 90 dias, prazo idêntico à vigência do recuo do presidente americano. As tarifas adicionais foram suspensas temporariamente; continua valendo a taxação de 10% a todos os países; a China está sobretaxada em 145%, segundo a Casa Branca.

Enquanto autoridades, investidores, economistas e analistas tentam adivinhar o porvir na inflação, na atividade econômica, nas relações comerciais, consumidores e empresas se debruçam sobre as decisões que moldarão o futuro. Há notícias de famílias americanas estocando alimentos para fugir das remarcações, fantasma que assombrou gerações de brasileiros que viveram a hiperinflação. O país já teve filas de carros em postos de combustíveis na véspera de reajuste no preço da gasolina; a classe média comprou freezers para congelar comida e, depois do Plano Real, praticamente aposentou o eletrodoméstico. Institutos de pesquisa e o próprio IBGE, órgão oficial, detectaram mudanças nas cestas de consumo antes e depois da estabilização. Com poder de compra restabelecido, gastou-se mais com iogurte, frango, remédios, até dentadura. Quando a grana aperta, ovos substituem a carne, ultraprocessados — mais baratos, nada saudáveis — tomam o lugar de alimentos in natura.

Nos Estados Unidos, já tem gente preocupada com as decisões microeconômicas — e como influenciarão o planejamento das empresas e a economia como um todo. O país está no limiar de uma inédita mudança de preços relativos, às vésperas de optar entre manter, reduzir ou banir hábitos de consumo. O economista Justin Wolfers, da Universidade de Michigan, no artigo “Americano, sua vida nunca mais será a mesma depois das tarifas de Trump”, publicado no New York Times, foi quem primeiro alertou sobre os riscos à espreita e suas consequências.

— Tarifas pequenas criam problemas pequenos. Tarifas grandes criam problemas enormes.

Lembrou que um aumento substancial de tarifa sobre o abacate importado do México pode levar à troca da guacamole real pela fake nos cardápios; uma máquina de lavar ou um carro mais caros podem obrigar uma família a manter por mais tempo os modelos antigos, menos eficientes no funcionamento e no consumo de energia e combustível. Ele tratou dos Estados Unidos, mas o raciocínio vale para qualquer lugar. Mudanças bruscas e profundas geram desconfiança e mudam comportamentos. Não é só por um punhado de dólares — ou milhões, ou bilhões. Em jogo estão traição entre nações amigas, saúde e bem-estar da população, desempenho da economia, proteção ao meio ambiente e até escalada da violência por xenofobia. O preço é alto para todo mundo. Em todo o mundo.

 

Nenhum comentário: