O Estado de S. Paulo
Correndo por fora da batalha das tarifas, a
grande pauta global dos alimentos precisa vir à tona
O centro das discussões mundiais são as
tarifas de Trump. Não poderia ser diferente: envolvem a economia do planeta e a
sorte de bilhões. No entanto, há uma decisão de Trump que foi pouco discutida,
com efeito arrasador sobre os mais pobres do mundo. Trata-se do corte de 83%
dos programas norte-americanos de ajuda humanitária e ao desenvolvimento. O
balanço do estrago dessa decisão foi feito nas primeiras semanas após o
anúncio, mas ainda assim ele pode surpreender pela sua carga negativa.
O jornal Le Monde cita a primeira avaliação de março, divulgada na revista Nature: a suspensão da ajuda arrisca privar 1 milhão de crianças de acesso ao tratamento vital contra a desnutrição e a provocar 160 mil mortes anuais. Essas análises se apoiam no fluxo de financiamento e na mortalidade constatada quando não se combate a desnutrição.
O problema não se limita ao corte americano.
Com a nova configuração política e o abalo da Otan, os principais países
europeus começam a destinar mais dinheiro para armamento. A Alemanha, por
exemplo, flexibilizou suas rígidas regras fiscais para destinar verbas ao setor
militar. Países como a França e o Reino Unido reduzem sua ajuda ao
desenvolvimento de países pobres. A França cortou 37%; a Inglaterra, 40%. Se
somamos a renúncia americana com os cortes europeus, cerca de 2,3 milhões de
crianças não serão tratadas e abre-se a possibilidade de mais 370 mil mortes de
crianças por ano. É como se a tragédia de crianças morrendo pelas bombas em
Gaza fosse multiplicada por 30.
Ao anunciar o desmantelamento da Usaid, Elon
Musk afirmou que ninguém morreria por causa de um corte para controlar a ajuda
estrangeira. As estimativas o desmentem.
A organização humanitária Helen Keller afirma
que somente em Bangladesh, Nigéria e Nepal cerca de 21 milhões de pessoas
ficaram sem ajuda nutricional, entre elas 11 milhões de crianças. A questão
alimentar já era problemática, e ficou dramática a partir da retirada dos EUA,
que eram responsáveis por 30% da ajuda mundial.
Nos dias 27 e 28 de março, a França organizou
um encontro internacional, uma espécie de conferência da nutrição. O tema era
também qual resposta deveria ser dada pela comunidade internacional a esta nova
situação, em que os EUA se demitem e os europeus, antes dos americanos, já
começam a deixar o campo. Os organizadores reconhecem que o debate sobre
nutrição não se limita à comida, ele se estende às mudanças climáticas. Até a
obesidade crescente em algumas áreas do mundo era parte da agenda. O Brasil participou
desse encontro. A representante brasileira foi Janja. Lula lançou no Rio a
Aliança Global contra a Fome. Abriu-se, com essa renúncia americana, não só um
campo de crítica a Trump, como uma necessidade de redobrar o esforços diante de
uma situação calamitosa. Lula tem não só a chance, mas também a necessidade de
avaliar o novo quadro e ampliar os esforços que culminaram com o consenso no
Grupo dos 20. Antes de tudo isso, eu já tinha escrito um artigo sobre a questão
dos alimentos, mostrando que o alto preço momentâneo no Brasil, na França e nos
Estados Unidos é apenas a ponta do iceberg.
Inspirei-me no livro do jornalista Paul
Roberts The End of the Food, no qual analisa as cadeias globais de
abastecimento e fez previsões sombrias sobre o futuro dos alimentos no mundo.
Ele menciona três variáveis que podem definir esse futuro: energia, mudanças
climáticas e crise hídrica. Muitos países já não produzem alimentos para
economizar água. E os mais competitivos, como o Brasil, exportam milhões de
litros de água gratuitamente, por meio da produção de carne de frango e porco.
O livro de Roberts começa com as questões de saúde que a produção em grande
escala traz, como a contaminação dos alimentos, mas examina também algumas das
aspirações de países mais pobres, como por exemplo a de comer mais carne. Isso
traria melhorias na saúde, mas é uma forma pouco eficiente de obter calorias.
Em média, são necessários dois quilos de cereais para produzir um quilo de
carne.
Aos poucos, a complexidade da alimentação
diante do crescimento mundial vai subindo na agenda. Dois presidentes, por
exemplo, falaram do preço do ovo nas últimas semanas.
Lula, no Brasil, reclamou dos aumentos
causados por questões climáticas, preço de rações e conjuntura de maior consumo
de ovo por causa da Quaresma. Devastada pela gripe aviária, a produção
norte-americana elevou os preços de forma assustadora. Em Nova York, os ovos
estavam sendo vendidos por unidade ou em caixas de três. Trump mencionou o tema
no dia em que anunciava a questão das tarifas, o que mostra a importância
estratégica que uma crise alimentar pode ter para os governos ao redor do
mundo.
Aliás, a importância do tema da escassez é
indiscutível, pois já derrubou vários governos. A questão é prever as
consequências de uma crise durável, provocada pela escassez de água, ausência
de energia abundante e empobrecimento irreversível dos rios e oceanos.
Correndo por fora da batalha das tarifas, a
grande pauta global dos alimentos precisa vir à tona. Naturalmente, temos de
começar pela emergência da fome e pela realidade assustadora de existirem 80
milhões de crianças necessitando de tratamento contra a desnutrição. Mas há
amplo caminho pela frente, um pouco ofuscado pelas tarifas, em que os alimentos
são uma espécie de coadjuvantes no debate que envolve preço de carros, máquinas
de lavar e iPhones.
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