O Estado de S. Paulo
O que está em risco nos Estados Unidos não é (apenas) a democracia, é o liberalismo
Visões subjetivas sobre como o mundo funciona
— ou deveria funcionar — compõem o sistema de crenças de um país. Nos Estados
Unidos, essa estrutura sempre foi alicerçada no liberalismo, especialmente após
a Segunda Guerra Mundial, quando o país se consolidou como seu principal
expoente no mundo ocidental e propagador desses valores no cenário global.
Liberdade individual, competição, livre mercado, governo limitado, igualdade perante a lei e democracia foram os pilares que moldaram a ordem institucional americana. Essa crença liberal ajudou a sustentar um ciclo virtuoso de desenvolvimento econômico e estabilidade política, traduzido na ideia do “sonho americano”: esforço individual, trabalho duro e meritocracia como caminhos legítimos para o sucesso e a prosperidade. Enquanto essa crença foi dominante, os EUA operaram quase em “piloto automático”, com ajustes de rota marginais.
Contudo, quando os resultados políticos e
econômicos frustram as expectativas da população — especialmente dos principais
atores políticos e agentes econômicos —, a crença dominante torna-se maleável e
suscetível a mudanças, especialmente diante de choques.
Abrem-se brechas, ou janelas de oportunidade,
para a contestação do sistema de crenças vigente — e, por consequência, das
instituições que o sustentam. Mudança de crenças, portanto, é a chave para se
entender mudanças institucionais.
O retorno de Donald Trump à presidência não
pode, portanto, ser interpretado como um acidente — algo esdrúxulo,
escatológico ou estranho ao ambiente político americano. A defesa de valores
antagônicos ao liberalismo — como nacionalismo, protecionismo, segurança,
estranhamento com a diferença, muros, tarifas, barreiras comerciais,
preconceito contra imigrantes — sinaliza um estágio explícito de competição
entre crenças e valores sobre como o mundo deveria funcionar.
Mudanças estruturais costumam ser
inquietantes e até assustadoras, pois ainda não está claro o que irá
prevalecer: quais crenças e instituições permanecerão e quais se tornarão
dominantes. Portanto, ainda é cedo para afirmar com certeza se os EUA estão atravessando
uma transição estrutural de valores. Mas os sinais de desalinhamento entre
expectativas e resultados produzidos pelas suas instituições são cada vez mais
evidentes.
Mais do que a democracia em seu sentido
minimalista — o regime em que partidos perdem eleições competitivas — o que
hoje parece realmente em risco, com o novo governo Trump, é a própria base
liberal que historicamente definiu o ethos americano e do mundo ocidental.
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