O Globo
Neste Natal de 2025 há poucos indícios de que
soubemos desembrulhar — com o devido zelo — o que nos foi dado de presente: a
vida
A escritora e naturalista americana Diane Ackerman é craque — costuma abordar temas complicadíssimos sem medo de escorregar. Sua obra mais conhecida no Brasil, “O Zoológico de Varsóvia” (2019) , relata o cotidiano do diretor da instituição Jan Zabinski, e sua mulher Antonina, ambos poloneses e da resistência. Narrado em ordem cronológica e baseado nos diários dela, se inicia nos primórdios da invasão alemã de 1939. Com a invasão, veio a terra arrasada pelo ar, e, com os bombardeios, também o zoológico virou matadouro. O massacre dos bichos foi ordenado por um zoologista e colecionador alemão (que, antes, separou os espécimes mais raros para si). A execução foi obra das SS hitleristas. Foi tão brutal que Antonina anotou no diário mantido até o final: “Quantos humanos morrerão da mesma forma nos próximos meses?”. Não ficaram parados. Enquanto os nazistas despovoavam o gueto de Varsóvia enviando-o ao extermínio, o casal Zabinski repovoava o zoológico — desta vez, com judeus contrabandeados do gueto. Conseguiram escondê-los nas jaulas esvaziadas, protegeram-nos da deportação e salvaram mais de 300 da morte certa. É uma baita história narrada com notável conhecimento das espécies — humana e animal.
Acaso ou coincidência para esta semana
arrastada de 2025, outro título da mesma Ackerman — “Uma alquimia da mente”
(sem edição no Brasil) — dá o que pensar. À época do lançamento nos Estados
Unidos, a autora estava em turnê de promoção da obra quando recebeu a notícia
de que o marido sofrera um AVC. Afasia global. Tendo investido quase uma década
em pesquisas neurológicas para escrever sobre o funcionamento da mente, ela
fechou o foco: conseguiria que o marido voltasse a pronunciar seu nome. Levou
anos e conseguiu. Em “Alquimia da Mente”, ela nos convida a ver nosso cérebro
de forma pouco científica, amigável para leigos:
— Imagine o cérebro como aquele lustroso
monte de vida, um parlamento acinzentado de células, uma fábrica de sonhos, um
pequeno tirano dentro de uma bola de osso, aquele amontoado de neurônios
comandando todos os lances [...], muitos ‘eus’ entupidos no crânio como roupas
demais enfiadas num saco de ginástica. O neocórtex tem cumes, vales e dobras
porque o cérebro continua a se remodelar, mesmo no espaço apertado. Consideramos
normal o fato, à primeira vista ridículo e ainda assim inegável, de que cada
pessoa carrega no alto do corpo um universo completo em que trilhões de
sensações, pensamentos e desejos se escoam. Misturam-se em privado, em
silêncio, agitam-se em muitos níveis, alguns dos quais nem percebemos — melhor
assim.
Em linguagem também não científica,
costuma-se descrever o cérebro como o objeto mais complexo de que se tem
conhecimento no universo. Ele abriga 86 bilhões de neurônios, todos
dissemelhantes, conectados a milhares de outros neurônios que, por sua vez, transmitem
sinais uns aos outros através de 100 trilhões de sinapses. Foi o estudo
racional desse organismo (sua química, mecânica e estrutura celular) que
desembocou, entre outros, na publicação das primeiras sequências do Projeto
Genoma Humano e seu inesgotável leque de triunfos para a medicina e a
biotecnologia.
Beleza. Mas o ponto, aqui, é outro. Enquanto
o cérebro é obra da biologia, é a vida que transforma o cérebro em mente. E lá
se vão 5 mil anos desde que poetas e filósofos, doutores de divindade e da
medicina se debruçam sobre esse mistério. É na imensa vastidão da mente humana,
com sua história, arte, literatura, religião, filosofia, poesia, música, mitos
que se construiu a humanidade passada e se formarão nossos pares humanos do
futuro.
Ou, como escreveu o saudoso ensaísta
americano Lewis H. Lapham: “O trabalho do cérebro consiste em receber
presentes; a arte da mente está em desembrulhá-los”. Neste Natal de 2025 há
poucos indícios de que soubemos desembrulhar — com o devido zelo — o que nos
foi dado de presente: a vida.

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