Para o ministro Carlos Ayres Britto, do Supremo Tribunal Federal, que decidiu ontem que os arrozeiros terão que deixar a reserva indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, até 30 de abril, cabe agora às Forças Armadas "tirar partido dos índios, tirar proveito da presença deles, que conhecem essa terra virginalmente, para auxiliar na defesa do território brasileiro". O ministro, que foi o relator do processo da demarcação da reserva, uma área contínua de 1,7 milhão de hectares, homologada pelo governo federal em abril de 2005, onde vivem 18 mil índios das etnias Macuxi, Wapichana, Patamona, Ingaricó e Taurepang, acha que "ninguém conhece as entranhas do país, as fronteiras do Brasil, melhor do que os índios. É preciso inculcar neles aquilo para o que já têm predisposição, o sentimento de brasilidade, tratá-los como brasileiros que são".
Ayres Britto recorda uma frase que ouviu de um índio: "Nós estávamos aqui antes de a noite nascer", e comenta: "É muito bonito isso. Quem estuda a história do Brasil constata que eles estavam aqui há 15 mil anos".
Ele considera que o Supremo construiu "uma decisão reveladora do regime constitucional dos índios, e que define que faixa de fronteira é compatível com terra indígena".
A decisão do Supremo, que teve base em seu voto de relator, reconhece que a faixa de fronteira é de especial interesse da segurança nacional, "mas a soberania nacional não fica fragilizada pelo fato de haver índio ocupando a faixa de fronteira".
Até porque, historicamente, ressalta Ayres Britto, "os índios ocuparam mesmo o mais das vezes faixas de fronteiras, e sempre operaram como uma espécie de muralha". Ele lembra que, "antigamente, até se dizia "a muralha do sertão", uma muralha humana. Os estrangeiros não conseguiam entrar no território nacional porque os índios reagiam".
O relator destaca que uma das passagens mais explícitas do seu voto é "a impossibilidade de índio cobrar passagem, bloquear estradas, dificultar o trânsito das Forças Armadas, das autoridades policiais".
Ele entende que os arrozeiros "precisam de um tempo para sair do território, têm gado lá, equipamentos agrícolas pesados". E diz que sentiu que eles acham "muito injusto sair assim de afogadilho, deixando inclusive as plantações".
Mas aguardar a colheita traria vários inconvenientes, comenta Ayres Britto, para quem "segurar esses índios por três, quatro meses não seria fácil, é uma luta de 32 anos".
Como as chuvas começam em maio, e dificultariam enormemente a remoção tanto do gado quanto dos equipamentos pesados, Ayres Britto propôs ao governo indenizar a colheita e criar um programa de seguro de desemprego para os trabalhadores que estão lá, "em homenagem à situação emergencial".
O governo fará a colheita e dará a ela uma destinação social. Com isso, a Polícia Federal já pode entrar na área para assegurar a tranquilidade da saída dos arrozeiros.
Também órgãos estatais já podem fazer levantamento de campo. O Ibama tem um plano de saída dos arrozeiros que minimiza o impacto ambiental, porque a remoção de milhares de cabeças de gado e equipamentos pesados pode operar como fator de desagregação ambiental.
Lá há igarapés, rios, e o Ibama quer entrar para fazer um levantamento da degradação ambiental já ocorrida, o que parece ser verdade: há agrotóxico nas correntes de água, desmatamento.
Ayres Britto diz que há denúncias de que em uma das fazendas do líder dos rizicultores, o ex-prefeito de Pacaraima Paulo César Quartiero, nos últimos tempos oito mil hectares de mata foram devastados, e o Ibama quer documentar tudo isso.
Como relator do processo, Ayres Britto não considera que o Supremo tenha assumido posição ativista nesse caso, no sentido de ir além da lei, de preencher um espaço que o Legislativo deixou em branco.
"O ministro Carlos Alberto Direito, de maneira muito criativa, fez migrar para a parte deliberativa da decisão os fundamentos e os anteparos constitucionais que eu indiquei no meu voto. Deu visibilidade e melhor condição de operacionalidade, mas não houve inovação de conteúdo", esclarece.
Reconhecendo "o caráter histórico da causa, a complexidade da decisão, a repercussão que a decisão teria", o ministro Direito, "muito inteligentemente, elaborou aquele catálogo, à feição de um estatuto", analisa Ayres Britto.
Lembrando que todas as questões delicadas contidas nas 18 exigências estabelecidas na decisão final do Supremo faziam parte de seu voto de relator, Ayres Britto ressalta que todas elas estão contidas na Constituição: a faixa de fronteiras; a posição das Forças Armadas, de poderem transitar livremente pelo território indígena e implantar ali seus batalhões, seus equipamentos, suas instalações; a questão ambiental; a Polícia Federal poder exercer sua função de polícia de fronteira sem a autorização dos índios; o usufruto dos índios que não alcança os minérios.
Esses fundamentos e anteparos, Ayres Britto foi buscar na Constituição, que, segundo ele, "foi pródiga no trato da questão indígena. Contém nada menos que 18 dispositivos, ora no capítulo próprio, ora no seu corpo normativo". "Eu dissequei cada um desses dispositivos para concluir pelo reconhecimento do direito originário dos índios, e pelo formato contínuo, único compatível com o direito constitucional conferido às etnias indígenas".
O governador de Roraima Anchieta Junior, do PSDB, sempre disse que, uma vez definida a questão, ajudaria. "Quero ver se o governador entra no circuito como protagonista. Ele é muito chegado aos arrozeiros, a classe política de Roraima está unida, não simpatiza com a questão indígena, o que compreensível. Mas, como o Supremo decidiu, agora é cumprir, evitando os traumas", define Ayres Britto.
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