Não foram poucas as vezes em que a obra de Marx e a herança do seu pensamento foram declaradas como peremptas e anacrônicas, não sendo capazes de explicar a natureza do nosso tempo. A queda do Muro de Berlim significaria a demonstração fática de que o augúrio de tantos afinal encontrava a sua confirmação: na melhor das possibilidades, Marx seria um pensador prisioneiro das circunstâncias do século 19 e da filosofia da história de Hegel, com a qual, apesar dos seus esforços, jamais teria conseguido romper.
Sobretudo estaria por terra o princípio que, na sua teoria do materialismo histórico, assentava o primado da instância econômica na determinação da vida social, cujo desenvolvimento o levou a seus estudos sobre o capitalismo em sua obra maior, O Capital, quando identificou o processo de subsunção da economia real ao sistema financeiro como o foco de crises especulativas que o ameaçariam persistentemente de colapso.
Estamos bem longe da queda do Muro e, apesar do diagnóstico, ora vencedor, que condenou Marx ao anacronismo, desde o setembro negro de 2008 o mundo parece estar fora dos seus eixos, vítima dos mecanismos da intermediação financeira, pondo em xeque hegemonias, moedas, conquistas sociais e políticas. Este pós-2008 é diverso dos acontecimentos dos idos de maio de 1968, pois, em vez de gravitar em torno de valores culturais, trata-se de uma crise que, sem deixar de incluí-los, tem o seu epicentro na natureza do sistema capitalista e nas dificuldades que enfrenta para a sua reprodução ampliada. O seu tema dominante não é o dos libertários que, em 1968, bradavam que "é proibido proibir", e o papel dos seus filósofos de ontem tem encontrado o seu equivalente funcional nos economistas de hoje e nos comentaristas versados na crítica da sociabilidade. A matéria é outra: é econômica, falta de emprego e de oportunidades de vida.
Não há observador qualificado da cena contemporânea que se recuse à hipótese de que estamos diante de uma mudança epocal. O capitalismo, mais uma vez, poderá sair renovado da crise atual, mas o preço da sua reprodução parece exigir algo bem além de uma retomada do experimento keynesiano. Os custos de uma saída para os ciclos depressivos se tornam cada vez mais pesados, e já importam a necessidade de uma inédita ordenação do sistema financeiro em escala mundial, com a efetivação de mecanismos de cooperação internacional que a todos obrigue. Estamos longe dos tempos de Hegel, quando se podia conceber a transferência da tocha da civilização de um Estado para outro, e, definitivamente, a China não parece ser o lugar mais adequado para o seu novo endereço.
Aqui, do extremo Ocidente onde nos situamos, e do alto da nossa História bem-sucedida, com seus valores de paz, de comunidade, que, bem ou mal, tem resistido aos avanços da mercantilização da vida social, muito particularmente pela convivência que se soube criar entre diferentes etnias e religiões, todas protegidas constitucionalmente, e pelo fato capital dos nossos êxitos no processo de modernização, estamos dotados de condições para o exercício de voz nos desafios ora presentes no mundo.
Nossas credenciais têm, portanto, um duplo registro: o das ideias e o dos interesses. E o que ainda nos falta é um projeto de nação que se afirme de baixo para cima, rompendo com décadas de modernização pelas vias do pragmatismo, de Vargas a Lula, passando por JK e pelo regime militar, sempre em busca de ajustamento ao mundo. A linguagem da modernização foi e segue sendo a da economia, tudo o mais devendo ceder lugar a ela e aos imperativos de luta contra o tempo na superação do atraso de suas forças produtivas. O desenvolvimento político e social seria sucedâneo do sucesso no front econômico, com que se justificava uma política de tutela das associações dos trabalhadores e o autoritarismo político que confiava às elites na chefia do Estado a missão de nos conduzir, com o pé no acelerador, a novos patamares de acumulação.
A nova época que se abre diante de nós, se imediatamente promete ser de escassez e de destruição criadora de ativos, como dizem os economistas, também pode ser a da oportunidade para a política e para a reconstituição do tecido social, esgarçado depois de décadas de exposição nua aos automatismos do mercado. O tempo é de riscos e de novos rumos. Como disse um grande autor, na História de um povo há momentos em que o passado deixa de iluminar o futuro, como agora, em que a tradição do nosso processo de modernização não nos serve para o enfrentamento da crise atual, que está a exigir um novo repertório, uma vez que o antigo, que nos levaria a uma tentativa de fuga solitária, nos pode excluir ou subalternizar a nossa presença nos fóruns de cooperação internacional de onde deve sair uma nova engenharia para a operação da economia-mundo.
Tal repertório é o do moderno, estimulada a autonomia dos seres sociais e o adensamento da sua participação na esfera pública, especialmente os de origem subalterna, com uma radical desprivatização do Estado, lugar do interesse público e da universalização de direitos, e da afirmação, inclusive no cenário internacional, da democracia como um valor universal. Ainda imersos em trevas, como na metáfora de Tocqueville, o autor há pouco citado, aqui e ali se distinguem riscas de luz, tênues, é verdade, como na liberação de poderes públicos capturados, por meio de uma intermediação política não republicana, por interesses privados, e no encontro, em São Paulo, da presidente Dilma com líderes e importantes personalidades da oposição.
Aí podem estar sinais de que a estratégia da presidente estaria considerando a possibilidade de fazer frente à crise com a política do moderno.
Luiz Werneck Vianna é professor-pesquisador PUC-Rio.
FONTE: O ESTADO DE S. PAULO
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