As pesadas condenações impostas aos envolvidos no escândalo do mensalão deixaram uma legião de brasileiros de alma lavada, produzindo um forte aplauso social que o Judiciário desconhecia
O julgamento da Ação Penal 470 termina com a radicalização das ambivalências que o acompanharam desde o início: as pesadas condenações impostas aos envolvidos no escândalo do mensalão deixaram uma legião de brasileiros de alma lavada, produzindo um forte aplauso social que o Judiciário desconhecia. Fortaleceu-se com isso. Já a heterodoxia do julgamento, a quebra de paradigmas, a flexibilização de exigências de provas para condenar e a má tipificação de crimes deixam uma outra legião, preocupada com os novos superpoderes do STF. Essa preocupação não deve ser confundida com esperneio dos condenados e aliados. Alcançam o mundo jurídico e acadêmico e o próprio STF, onde quatro ministros votaram contra as cassações de mandatos pela Corte. Atribui-se viés político aos votos dos ministros Lewandowski e Toffoli, por mais consistentes que sejam. Mas Cármen Lúcia e Rosa Weber, pela dureza, são insuspeitas. E divergiram corajosamente nesse item.
A heterodoxia prevaleceu até no ato final de ontem: fugindo à tradição, o ministro presidente, Joaquim Barbosa, não encerrou o julgamento com a proclamação oficial do resultado. E as rusgas também: ao encerrar enaltecendo os servidores que contribuíram para o êxito do julgamento, Barbosa irritou o ministro Marco Aurélio, que se retirou num aparente protesto.
De todas as heterodoxias, a mais flagrante e polêmica, a que pode afetar a nossa arquitetura democrática, foi a de ontem. Apesar da clareza e da autoaplicabilidade do artigo 5º da Constituição, que reserva às duas Casas legislativas a prerrogativa de cassar mandatos dos membros que tenham sofrido condenação judicial, a Corte optou por tirar, ela mesma, o mandato dos deputados que são réus na ação. O ministro Celso de Mello desempatou a favor das cassações e arrematou com críticas contundentes à presidência da Câmara, que sinalizou a disposição de descumprir a decisão. Qualificou essas intenções de "politicamente irresponsáveis e juridicamente inaceitáveis". Confronto explicitado, consequências virão.
O Congresso não cometerá desatinos, como o de anistiar os condenados, mas tem como reagir. É provável que a Mesa da Câmara entre com recurso. Já haverá um novo ministro na Casa, Teori Zavaski, que pode fazer diferença, já que a decisão foi por 5 votos a 4. Havia ontem quem propusesse uma lei complementar que liquidaria com a tese apresentada por Celso de Mello: a de que a exclusividade das Casas legislativas para cassar, expressa no artigo 5º, aplica-se apenas aos crimes menores. Quando as condenações forem superiores a quatro anos, e por crimes contra a administração, como peculato, corrupção ativa e passiva e assemelhados, o STF poderia tirar os direitos políticos e cassar os mandatos. Isso não está escrito nem na Constituição nem no Código Penal, que lhe é inferior. A lei diria o oposto.
Calou fundo no meio político a ênfase de Celso de Mello no poder supremo da Corte, inclusive o de errar por último. E a afirmação de que a Constituição continua sendo escrita todos os dias pelo STF, que recebeu da Constituinte o papel de interpretá-la e zelar por sua observância. Por tal entendimento, o Judiciário é o poder que pode mais.
Os aplausos ao julgamento e a reverência ao novo STF inibiram as críticas à heterodoxia. Poucos foram os reparos registrados pela mídia, vindos dos meios acadêmico ou jurídico. Esse debate está adiado para depois do trânsito em julgado. Os críticos temeram, também, ser confundidos com aliados dos réus. No topo da lista de "inovações", a condenação de José Dirceu na ausência de provas, com base em indícios e aplicando ao pé da letra a teoria do domínio do fato, o que produziu críticas de seu próprio formulador, o alemão Claus Roxin. Concluiu-se que os recursos repassados a políticos da base aliada configuraram compra de voto e apoio ao governo. Dispensou-se, nesse e em outros casos de corrupção ativa e passiva, o chamado ato de ofício, a prova de uma contraprestação pela propina. Nas condenações por lavagem de dinheiro, segundo vários juristas, não houve a tipificação do crime. Lavagem ocorreria quando o dinheiro de origem ilícita é injetado na economia para ganhar legalidade e ser reinvestido. Os executivos do Banco Rural e outras instituições envolvidas teriam cometido, segundo a defesa, o crime de favorecimento real (ajuda na ocultação de recursos de caixa dois), previsto no artigo 349 do Código Penal, com pena máxima de seis meses. Essas e outras decisões serão agora contestadas pelos agravos ou recursos. Talvez por formalidade, porque a maioria continuará sendo maioria.
Realismo baiano. Na semana passada, o deputado e futuro prefeito de Salvador, Antonio Carlos Magalhães Neto, despediu-se da vida parlamentar numa festa que reuniu políticos, funcionários e jornalistas. Na semana anterior, ele visitou a presidente Dilma, acompanhado pelo governador petista da Bahia, Jaques Wagner. Neto, como é chamado, traduz o dilema que vive seu partido, o Democratas, antigo PFL. Continuar fazendo oposição ao governo Dilma ou buscar uma situação mais confortável no espectro político, que não seja de adesismo, mas também não deixe à míngua os prefeitos do partido. Neto arrancou risadas de Dilma e de Jaques na audiência, quando disse: "Ser linha auxiliar do governo, vá lá. Nós já fomos, com Fernando Henrique. Mas ser linha auxiliar da oposição é muito cruel." Wagner diz-se aberto à parceria local e disposto a ajudar o jovem prefeito a abrir outras portas federais.
Fonte: Correio Braziliense
Nenhum comentário:
Postar um comentário